sexta-feira, 31 de julho de 2020

João Cabral de Melo Neto, engenharia do texto e denúncia de problemas sociais

         João Cabral de Melo Neto (1920-1999) nasceu no Recife e passou a infância em engenhos de açúcar. De volta à capital pernambucana, em 1930, cursou o primário no Colégio Marista. Amante do futebol, chegou a ser campeão juvenil pelo Santa Cruz Futebol Clube, em 1935. Com 18 anos começou a frequentar o grupo literário que se reunia em torno do crítico Willy Lewin e do pintor Vicente do Rego Monteiro. Publicou seu primeiro livro, “Pedra do Sono”, em 1942. Em 1945 deu a público “O engenheiro”, em que se definem os principais traços da sua poesia.

João Cabral é o mais importante poeta da chamada geração de 45, que se vale das conquistas das gerações anteriores para produzir uma obra de grande maturidade formal. É próprio dos participantes desse grupo, segundo Péricles Eugênio da Silva Gomes, “o agudo sendo de medida, a expressão sem excessos ou derramamentos”. Isto os faz substituir o anseio de ruptura e a denúncia em tons naturalistas das desigualdades sociais, comuns às gerações anteriores, pela reflexão comedida e o cuidado com a arquitetura do verso. 

Em João Cabral, esse cuidado se traduz em poemas de extremo rigor compositivo, nos quais o componente emocional é temperado pela reflexão. Avesso ao sentimentalismo fácil e aos apelos do inconsciente, ele concebe o poema como uma resposta ao “desafio da página em branco”, que supõe uma escolha deliberada de palavras e imagens.

           A crítica aponta em Cabral um barroquismo que se expressa em dualidades como “dentro e fora”, “masculino e feminino”, “Nordeste e Andaluzia”, “caatinga e mangue”. A aproximação é válida desde que não se entenda esse barroquismo como excesso retórico. Ninguém mais avesso ao excesso do que esse “poeta do menos”, como o qualificou o crítico Antonio Carlos Secchin. Os dualismos são uma marca positiva da poesia do pernambucano; prova disso é a associação que nela existe entre o rigor formal e a dimensão participante, expressa na denúncia das desigualdades sociais do Nordeste.   

 

     TEXTO

     Menino de engenho

A cana cortada é uma foice.

Cortada num ângulo agudo,

ganha o gume afiado da foice

que a corta em foice, um dar-se mútuo.

 

Menino, o gume de uma cana

cortou-me ao quase cegar-me,

e uma cicatriz, que não guardo,

soube dentro de mim guardar-se.

   

A cicatriz não tenho mais;

o inoculado, tenho ainda;

nunca soube é se o inoculado

(então) é vírus ou vacina.

 

                    COMENTÁRIOS

O título estabelece uma relação intertextual com o romance de José Lins do Rego; o que o romancista conta em detalhes o poeta resume em imagens e símbolos. Ambos têm em comum a dolorosa lembrança de uma fase da vida que lhes causou funda impressão e não deixou saudades.

 Chama a atenção nessa estrofe o esmero na construção da imagem. A identificação entre cana e foice, referida no primeiro verso, é explicitada nos versos seguintes por meio da reiteração da palavra “foice”, da forma que a cana toma por ação do objeto cortante e da animização presente no quarto verso, que sugere um pertencimento recíproco entre o instrumento e a planta.  “Cana”, “foice” e “gume”, por sinal, estão entre as palavras mais usadas pelo poeta.  

 A aliteração em pares das consoantes velar (/g/) e labiodental (/f/) sugere a agudeza e o movimento repetido da lâmina, que gradativamente fere a cana e lhe imprime o formato de foice. 

Não se deve confundir esse termo com um vocativo. Trata-se de um aposto circunstancial; o eu lírico se refere ao tempo em que era menino. Semelhantemente, o vocábulo “então”, que inicia o último verso, não é conjunção conclusiva, mas advérbio de tempo. Refere-se ao momento em que houve o corte.

A liberdade poética pode levar a empregos inusitados dos termos morfológicos. Nessa passagem, a combinação entre preposição e artigo introduz a ideia de consequência: “cortou-me a ponto de quase cegar-me”.

A referência ao caráter interno da cicatriz deixa ambígua a natureza do corte, cujo efeito foi mais psicológico do que físico. Pode ter havido um episódio com um pedaço de cana que, objetivamente, feriu o menino. Mas também se pode entender o corte como uma representação da vivência no engenho, pela qual ele foi dolorosamente marcado.

Estes versos confirmam a ideia de que o corte não se prendeu a um evento concreto. Do ponto de vista físico, é inconcebível que um pedaço de cano produza algum tipo de inoculação. Esse ponto de vista é confirmado pelo tom de incerteza com que se encerra o poema. Por meio das metáforas do vírus e da vacina, o eu lírico confessa não saber se o que viveu no engenho o fragilizou ou o fez mais resistente.

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