José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1848) é uma das figuras mais
curiosas das nossas letras. Num país em que os escritores são na maioria
burocratas e não sobrevivem da literatura, ele se destacou por ser o oposto.
Participou ativamente de campanhas em prol da exploração do petróleo por
companhias nacionais, chegando a criar empresas com esse objetivo; fundou
editoras para que o nosso mercado editorial não dependesse do mercado
estrangeiro; procurou modernizar a lavoura na fazenda que herdara do seu avô, o
visconde de Tremembé.
Estreou em livro com “Urupês”,
coletênea de contos na qual enfoca tipos brasileiros -- sendo o mais famoso
deles o caboclo Jeca Tatu. Jeca tornou-se uma espécie de símbolo do interiorano
descrente e acomodado; sempre vota no governo e tem na pesca e na mandioca (de
fácil plantio e colheita) o seu sustento. Um dos bordões preferidos dele é “Não
paga a pena”, ou seja, não vale o esforço, com o que justifica a passividade.
Lobato escreveu vários livros
infantis, gênero em que foi pioneiro entre nós. Achava que, para um país ter
uma grande literatura, era preciso estimular as crianças a ler (considerava,
por sinal, “a
criatura humana muito mais interessante no período infantil do que depois de
idiotamente tornar-se adulta"). Em grande parte graças a ele, muitos dos
nossos leitores se formaram lendo as aventuras de Emília, Narizinho, dona Benta
e outros cativantes personagens que habitam o Sitio do Pica-Pau Amarelo.
TEXTO
Negrinha
(fragmento)
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta?
Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos
vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos
imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo,
amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no
céu. (...) Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala
de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências,
discutindo o tempo. (...)
A
excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da
escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir
cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo (...). O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe
tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis.
Inocente derivativo:
— Ai!
Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. (...)
Certo dezembro vieram passar as férias com
Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas,
nascidas e criadas
em ninho de plumas.
Do
seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as
irromperem pela casa como dois anjos do céu —
alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a
senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio
dum castigo tremendo.
Mas
abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? (...)
Chegaram as malas e logo:
—
Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos. (...) Que é
aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que
dormia... (...)
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, com o coração
aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a
boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e
para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. (...).
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que
tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa
maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como
fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível
viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!
Assim foi — e essa consciência a matou.
COMENTÁRIOS
A caracterização inicial da personagem destaca-lhe a discrição e a obscuridade. Nascida na senzala, Negrinha traz nos olhos apreensivos as marcas de uma escravidão que de certo modo persiste no ambiente onde vive, sob o jugo da patroa.
A menção à excelência de Dona Inácia antecipa a ironia presente no parágrafo. O autor pinta-a com uma postura senhorial que evoca o patriciado do antigo regime, insatisfeito com os privilégios perdidos. Expressões como “trono”, “dona do mundo” e “dando audiências” confirmam a nostalgia do antigo mando, que é alimentada pela adulação das autoridades religiosas.
A escravidão estimula o sadismo, transforma a agressão em prazer e mesmo em necessidade. Com a Abolição, tirou-se do senhor a chibata mas não o ímpeto cruel, que agora se exerce de forma gratuita, automática. As miúdas maldades de Dona Inácia fazem lembrar os castigos de outros tempos, bem mais dolorosos; o efeito de ambos os tipos de suplício é o mesmo: coisificar suas vitimas, destruir-lhes a humanidade.
O ninho de plumas contrasta com a esteira e os trapos imundos sobre os quais vivera Negrinha. A antítese ganha relevo porque se revela pela ótica da menina. Daí a comparação das sobrinhas com anjos e, sobretudo, com cachorrinhos novos -- imagem da irreverência infantil. Negrinha estranha a condescendência da patroa com tais manifestações de liberdade, que sempre lhe foram negadas.
O emprego do discurso indireto livre enfatiza a empatia do narrador com a personagem. Por meio dos sinais próprios desse tipo de discurso (reticências, pontos de exclamação e de interrogação), ele traduz a surpresa e o encantamento que a visão da boneca provoca na menina.
A boneca desperta em Negrinha sentimentos que ela não conhecia. Repercute em camadas profundas do seu ser, tocando-lhe o instinto materno e revelando a sua humanidade. Essa consciência mostra-lhe, ao mesmo tempo, a condição de coisa a que fora relegada e contra a qual não pode lutar. O definhamento que se segue a essa descoberta culmina com a sua morte.