sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Paulo Mendes Campos, a erudição na crônica


               Paulo Mendes Campos é um dos maiores nomes da crônica brasileira. Pertenceu à chamada geração mineira de 45, em que também se destacaram autores como Fernando Sabino, Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende. Eles misturavam boemia, jornalismo e crise existencial com a leitura dos grandes autores universais e o requinte verbal. Isso elevou o nível da nossa crônica, que passou a figurar nas antologias escolares como modelos de bem escrever.
            
            “Paulinho”, como era conhecido, tinha a fama de ser o mais erudito do grupo. Dominava os clássicos portugueses e estrangeiros, sobre os quais escreveu comentários agudos e esclarecedores. Muitos dos seus textos são excelentes instrumentos de iniciação na grande literatura -- de Homero a James Joyce, passando por Rimbaud e Lewis Carroll. Perfeccionista, chegou a estudar russo para ler Maiakovski no original.

            A versatilidade com que trabalhava a palavra escrita levou-o a exercitar gêneros tão diversos como a poesia e o humor (Luis Fernando Veríssimo confessa que o leu muito). Avesso ao retoricismo, explorou as possibilidades da palavra em versos, axiomas e jogos verbais. Nestes últimos, cultivou o nonsense como uma forma de refletir sobre a complexidade da natureza humana.

          O desejo de sentir “o peso e a nitidez das palavras” o levou a experimentar LSD. Num dos textos em que relata essa experiência, afirma ter tido acesso ao “milagre da voz”, que brotava do “jorro caótico do inconsciente”. Sua literatura foi sobretudo a tentativa de obter um acesso lúcido a tal  milagre. Ou seja: de entender e organizar esse caos, que é o mais fiel espelho da alma humana.


                                   TEXTO 

                         Para Maria da Graça

      Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.

         Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti. (...)

     Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida.

        (...) É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste (...).

       Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo”. Em algum lugarcogumelos que nos fazem crescer novamente.

         E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. (...) O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo.

         Toda pessoa deve ter três caixas para guardar o humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

         Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de . A dor tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.

         Conclusão: a própria dor deve ter sua medida. É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

 

                         COMENTÁRIOS     

          A crônica se estrutura como uma carta em que o autor interpreta alguns trechos de “Alice no país das maravilhas”. Acompanha um volume do livro de Lewis Carroll,  que é oferecido à garota como presente numa ocasião socialmente muito valorizada -- aquela em que a menina, passando a moça, debuta na sociedade. A natureza imaterial desse presente chama a atenção para um rito de passagem bem mais importante, que leva ao amadurecimento interior.  

         Ao contrário dos manuais de autoajuda, que procuram ensinar a verdade sonegando ou reduzindo a complexidade  do real, o autor propõe a Maria da Graça um enigma. A advertência para que ela procure o sentido da obra “em si mesma” é um estímulo a que desconfie das fórmulas enganosas que vão querer lhe passar. É também uma primeira e fundamental lição sobre a leitura; lemos para desvenvendar os mistérios que existem dentro de nós.

        O alerta agora é para que a menina resista aos apelos da competição, tão frequentes no mundo moderno. O gosto pela disputa, o desejo da vitória a qualquer preço, a obsessão de deixar para trás os concorrentes levam a que o indivíduo se alheie de si mesmo.

      Entre os perigos que rondam o adolescente, está a depressão. Como ela pode se estender além do esperado, deve-se prevenir contra um dos seus mais traiçoeiros efeitos, que é superdimensionar as dificuldades. A troca de camundongo por hipopótamo constitui uma representação alegórica desse engano, que tende a paralisar o deprimido e pôr em risco a sua vida.

        Conhecer a si mesmo, como lembra Sócrates, demanda uma operação dialética do pensamento. Após prevenir Maria das Graças sobre o perigo de superestimar os problemas, o autor alerta-a sobre o risco oposto: o de subestimá-los. Com isso, encoraja-a a desconfiar das aparências e avaliar com realismo as situações.

       As chamadas “grandes ocasiões”, conforme indicam as antíteses contidas neste parágrafo, são os momentos em que tendemos a sucumbir aos extremos. Elas são marcadas não apenas pelo que nos deprime, como também pelo que nos exalta (a exaltação, como se sabe, constitui o reverso maníaco, ou eufórico, do processo depressivo). Contra essas armadilhas deve incidir nosso humor mais precioso e recôndito.

        Segundo o ditado, o feitiço às vezes se volta contra o feiticeiro.  Na versão paródica apresentada no texto, enfatiza-se mais a punição da vítima do que a de seu possível algoz, e com isso alerta-se para o perigo de se deixar seduzir pelo sofrimento.


Paulo Mendes Campos, a erudição na crônica

                Paulo Mendes Campos é um dos maiores nomes da crônica brasileira. Pertenceu à chamada geração mineira de 45, em que também s...