João Cabral de Melo
Neto (1920-1999) nasceu no Recife e passou
a infância em engenhos de açúcar. De volta à capital pernambucana, em 1930, cursou
o primário no Colégio Marista. Amante do futebol, chegou a ser campeão juvenil
pelo Santa Cruz Futebol Clube, em 1935. Com 18 anos começou a frequentar o
grupo literário que se reunia em torno do crítico Willy Lewin e do pintor
Vicente do Rego Monteiro. Publicou seu primeiro livro, “Pedra do Sono”, em 1942.
Em 1945 deu a público “O engenheiro”, em que se definem os principais traços da
sua poesia.
João Cabral é o mais importante poeta da chamada geração
de 45, que se vale das conquistas das gerações anteriores para produzir uma obra
de grande maturidade formal. É próprio dos participantes desse grupo, segundo Péricles
Eugênio da Silva Gomes, “o agudo sendo de medida, a expressão sem excessos ou
derramamentos”. Isto os faz substituir o anseio de ruptura e a denúncia em tons
naturalistas das desigualdades sociais, comuns às gerações anteriores, pela reflexão
comedida e o cuidado com a arquitetura do verso.
Em João Cabral, esse cuidado se traduz em poemas de
extremo rigor compositivo, nos quais o componente emocional é temperado pela reflexão.
Avesso ao sentimentalismo fácil e aos apelos do inconsciente, ele concebe o
poema como uma resposta ao “desafio da página em branco”, que supõe uma escolha
deliberada de palavras e imagens.
A crítica aponta em Cabral um barroquismo que se expressa em dualidades
como “dentro e fora”, “masculino e feminino”, “Nordeste e Andaluzia”, “caatinga
e mangue”. A aproximação é válida desde que não se entenda esse barroquismo
como excesso retórico. Ninguém mais avesso ao excesso do que esse “poeta do
menos”, como o qualificou o crítico Antonio Carlos Secchin. Os dualismos são
uma marca positiva da poesia do pernambucano; prova disso é a associação que nela
existe entre o rigor formal e a dimensão participante, expressa na denúncia das
desigualdades sociais do Nordeste.
TEXTO
A
cortou-me ao
e uma
soube
A
o inoculado, tenho
(
COMENTÁRIOS
O título estabelece uma relação intertextual com o romance de José Lins do Rego; o que o romancista conta em detalhes o poeta resume em imagens e símbolos. Ambos têm em comum a dolorosa lembrança de uma fase da vida que lhes causou funda impressão e não deixou saudades.
Chama a atenção nessa estrofe o esmero na construção da imagem. A identificação entre cana e foice, referida no primeiro verso, é explicitada nos versos seguintes por meio da reiteração da palavra “foice”, da forma que a cana toma por ação do objeto cortante e da animização presente no quarto verso, que sugere um pertencimento recíproco entre o instrumento e a planta. “Cana”, “foice” e “gume”, por sinal, estão entre as palavras mais usadas pelo poeta.
A aliteração em pares das consoantes velar (/g/) e labiodental (/f/) sugere a agudeza e o movimento repetido da lâmina, que gradativamente fere a cana e lhe imprime o formato de foice.
Não se deve confundir esse termo com um vocativo. Trata-se de um aposto circunstancial; o eu lírico se refere ao tempo em que era menino. Semelhantemente, o vocábulo “então”, que inicia o último verso, não é conjunção conclusiva, mas advérbio de tempo. Refere-se ao momento em que houve o corte.
A liberdade poética pode levar a empregos inusitados dos termos morfológicos. Nessa passagem, a combinação entre preposição e artigo introduz a ideia de consequência: “cortou-me a ponto de quase cegar-me”.
A referência ao caráter interno da cicatriz deixa ambígua a natureza do corte, cujo efeito foi mais psicológico do que físico. Pode ter havido um episódio com um pedaço de cana que, objetivamente, feriu o menino. Mas também se pode entender o corte como uma representação da vivência no engenho, pela qual ele foi dolorosamente marcado.
Estes versos confirmam a ideia de que o corte não se prendeu a um evento concreto. Do ponto de vista físico, é inconcebível que um pedaço de cano produza algum tipo de inoculação. Esse ponto de vista é confirmado pelo tom de incerteza com que se encerra o poema. Por meio das metáforas do vírus e da vacina, o eu lírico confessa não saber se o que viveu no engenho o fragilizou ou o fez mais resistente.