João da Cruz
e Sousa (1861-1898) é o mais importante poeta do Simbolismo brasileiro. Filho
de escravos alforriados, recebeu uma educação refinada graças ao patrocínio do
seu ex-senhor. Isso lhe permitiu aprender francês, latim e grego. Mesmo assim
sofreu muito com o preconceito. A amargura que isso lhe causava iria influenciar
a temática e sobretudo as imagens da sua poesia.
Aos sete anos compôs os primeiros versos, que apareceram em
jornais da província e tinham características parnasianas. Em 1885 lançou “Tropos e Fantasias” em parceria com Virgílio Várzea. Com o tempo percebeu que o racionalismo, o
apego ao descritivo e o pendor filosofante dos parnasianos
não o satisfaziam. Sentia a necessidade de expressar outras zonas do espírito,
o que só seria possível com a abertura ao fluxo do inconsciente e da memória.
A adesão ao Simbolismo ocorreu em 1893, com a publicação de “Missal”
(poemas em prosa) e “Broquéis”, em que se revela com mais intensidade o desgosto
com o preconceito. Nesses livros o poeta continua
um adepto do culto da forma, mas agora numa dimensão diferente. Passa a
manifestar suas inquietações em versos ricos de musicalidade e sugestões
cromáticas.
Sua
obra maior, “Últimos Sonetos”, foi publicada em 1905, em Paris, pelo amigo
Nestor Vítor. Nela a dor aparece menos
vinculada aos efeitos da discriminação racial; expressa-se como angústia metafísica,
anseio de espiritualidade, desejo de libertar a alma do invólucro carnal. O
livro mostra um equilíbrio entre o sofrimento
e a alegria de ultrapassar os limites terrenos. E traz, como motivo recorrente,
o anseio de se libertar da matéria e ir ao encontro do Ser cuja presença ele
intui justamente em razão dos males que sua ausência provoca.
TEXTO
Ausência
misteriosa
Uma hora só que o teu perfil se afasta,
Um instante sequer, um só minuto
Desta casa que amo -- vago
luto
Envolve logo esta morada casta.
Tua presença delicada basta
Para tudo tornar claro e impoluto...
Na tua ausência, da Saudade escuto
O pranto que me prende e que me arrasta...
Secretas e sutis melancolias
Recuadas na Noite dos meus dias
Vêm para mim, lentas, se aproximando.
E em toda casa, nos objetos, erra
Um
sentimento que não é da Terra
E que eu mudo e sozinho vou sonhando...
COMENTÁRIOS
A oscilação entre
erotismo e religiosidade leva a uma esquiva representação do objeto amoroso. O
poeta o molda em contornos rarefeitos, que tendem a suprimir a representação corporal.
Daí a referência a um perfil que se afasta. Essa é também uma maneira de
afirmar a precedência do espírito sobre a matéria.
A gradação descendente, estreitando as referências
temporais, reforça o temor de se ver privado do objeto. O uso da segunda pessoa
faz os versos soarem como um apelo para que ele não se distancie, embora ao
longo do poema não se peça que ele volte.
O apelo à sugestão, próprio da
escola simbolista, explica a inconstância com que se apresenta o luto. Apesar
de vago, o sentimento que ele provoca extrapola o interior do eu lírico e se projeta
no ambiente, maculando o que antes era puro (impoluto). A ideia da ausência
como mácula (mancha, no sentido moral) reforça a dimensão purificadora da
entidade a quem ele se dirige.
Nessa cadeia
de adjetivos associa-se a pureza à claridade, que se opõe ao negror do luto. Cores, tons, luz são meios com que o poeta,
além de traduzir os contrastes em que se debate a sua alma, procura representar
o inefável de sentimentos que oscilam entre o terreno e o sublime.
Os simbolistas usam iniciais maiúsculas para dar a
certos estados de alma uma dimensão transcendente. O Símbolo é um meio de
vincular a parte ao Todo e, consequentemente, de fazer a subjetividade aparecer
na dependência de algo maior. Em vez de dizer que chora ele próprio a Saudade, o
eu lírico afirma escutar-Lhe o pranto.
O paradoxo
sugere que a tristeza acomete o eu lírico desde tempos remotos. O sentimento
provocado pelo afastamento do objeto amoroso vincula-se à memória de antigas
perdas, cuja origem é impossível identificar. Isso condiz com a visão
psicanalítica de que a melancolia é o luto pela perda de um objeto ideal, que
nenhum objeto real consegue suprir.
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