Carlos Heitor Cony
nasceu em 14 de março de 1926, no Rio de Janeiro. Residiu por um breve tempo em
Niterói, onde ocorreu um episódio que marcou sua infância. Devido ao susto
provocado pelo voo rasante de um hidroavião, perdeu a fala. Como somente aos cinco
anos viria a pronunciar as primeiras palavras, a família preferiu educá-lo em
casa. Mais tarde, na escola, o menino apresentou problemas de dicção que o
tornavam objeto das brincadeiras dos colegas. Vendo que se fazia entender
melhor escrevendo, passou a fazer isso com regularidade.
Cony quis ser padre aos
dezoito anos e chegou a ingressar no Seminário Diocesano de São José, em Rio
Comprido (RJ). Lá entrou em crise por falta de vocação. O relato dessa
experiência encontra-se no romance autobiográfico “Informação ao crucificado”,
que segundo Renato Lessa “precede existencialmente todos os livros escritos por
Cony”. A última frase dessa obra (sobre a morte de Deus) marca o rompimento do
autor com os devaneios piedosos da infância e inaugura o ceticismo que permeará
sua produção posterior. Mas sobretudo abre as portas para o homem político,
engajado, que fará da literatura (também) um instrumento de resistência contra
a opressão. O melhor exemplo disso são os textos que publicou na “Folha de São
Paulo” no tempo da ditadura militar.
Cony escreveu romances,
reportagens, contos, crônicas e adaptações de clássicos da literatura. Por essa
vasta e significativa obra, foi eleito para a Cadeira nº 3 da Academia
Brasileira de Letras. Em seus livros de ficção, angústias sexuais e metafísicas
se alternam com dúvidas sobre o lugar do indivíduo na sociedade. Inspirado no
existencialismo sartriano, que se reflete em romances como “O ventre”, o autor tematiza
o problema da liberdade e da solidão. Na crônica, gênero em que também é
mestre, tempera com erudição e malícia a abordagem do cotidiano.
TEXTO
A
arte e a vida
O cinema e a TV
causam a violência na vida real ? Ou é a vida real que
inspira a violência no cinema e na TV? O assunto
é vasto e complicado, mas , acima de tudo , lamentável .
Em qualquer
das hipóteses constatamos o precário verniz da civilização humana .
Na outra ponta da corda , a leitura
de feitos da cavalaria
andante fez Dom
Quixote sair pelo mundo tentando fazer justiça à sua maneira . Quem influencia quem ?
COMENTÁRIOS
Abordando o tema da
violência, o cronista indiretamente remete a um debate que remonta a Platão e
Aristóteles. O primeiro afirmava que os poetas, ao expor as fraquezas dos
deuses e heróis, constituíam mau exemplo para a juventude. O segundo
considerava que essa exposição tinha um poder liberador (catártico). Cony se
recusa a optar por um ou outro ponto de vista. Acha que a raiz do problema está
próprio homem.
A metáfora destaca a
superficialidade do processo civilizatório, que “lustra” porém não modifica a
natureza do homem. Em termos freudianos, apenas lhe aumenta o mal-estar, já que
é impossível a renúncia total aos impulsos (pulsões) destrutivos. Essa
constatação torna irrelevante que se dê uma resposta às perguntas apresentadas
no início.
A obviedade da informação aparentemente reforça
que a realidade (ou seja, a vida) influencia a arte. O argumento a seguir
apresentado, no entanto, confirma a complexidade da questão. Como não se pode
considerar o assassinato de Abel por Caim como um primeiro estímulo para outros
crimes, não existiria uma matriz real para a violência.
A transição entre os parágrafos se faz por meio
de um operador argumentativo de caráter metafórico, equivalente a “por outro
lado”. O autor agora enfoca a possibilidade oposta, ou seja, a de que a arte
influencie a vida. Mesmo considerando a motivação livresca para o impulso
justiceiro de Dom Quixote, ele prefere manter a questão no ar.
A referência em primeira pessoa confirma o caráter
subjetivo da crônica. Ela é um gênero em que prevalecem o impressionismo, a
informalidade, o tom de conversa com o leitor. Não por acaso o cronista encerra
o texto (e o debate) dando um depoimento sobre suas preferências televisivas e
seu pacifismo. Para ele isso conta mais do que responder objetivamente ao questionamento
proposto.
A ressalva se justifica
por os westerns terem herdado do teatro grego a dimensão trágica. Nesse âmbito
a violência é positiva, pois serve para testar os limites morais do homem. Isso é bem diferente da gratuidade com que ela
frequentemente aparece no cinema e na TV.
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