sexta-feira, 24 de julho de 2020

Carlos Heitor Cony, crise espiritual e engajamento político


Carlos Heitor Cony nasceu em 14 de março de 1926, no Rio de Janeiro. Residiu por um breve tempo em Niterói, onde ocorreu um episódio que marcou sua infância. Devido ao susto provocado pelo voo rasante de um hidroavião, perdeu a fala. Como somente aos cinco anos viria a pronunciar as primeiras palavras, a família preferiu educá-lo em casa. Mais tarde, na escola, o menino apresentou problemas de dicção que o tornavam objeto das brincadeiras dos colegas. Vendo que se fazia entender melhor escrevendo, passou a fazer isso com regularidade.
Cony quis ser padre aos dezoito anos e chegou a ingressar no Seminário Diocesano de São José, em Rio Comprido (RJ). Lá entrou em crise por falta de vocação. O relato dessa experiência encontra-se no romance autobiográfico “Informação ao crucificado”, que segundo Renato Lessa “precede existencialmente todos os livros escritos por Cony”. A última frase dessa obra (sobre a morte de Deus) marca o rompimento do autor com os devaneios piedosos da infância e inaugura o ceticismo que permeará sua produção posterior. Mas sobretudo abre as portas para o homem político, engajado, que fará da literatura (também) um instrumento de resistência contra a opressão. O melhor exemplo disso são os textos que publicou na “Folha de São Paulo” no tempo da ditadura militar.
Cony escreveu romances, reportagens, contos, crônicas e adaptações de clássicos da literatura. Por essa vasta e significativa obra, foi eleito para a Cadeira nº 3 da Academia Brasileira de Letras. Em seus livros de ficção, angústias sexuais e metafísicas se alternam com dúvidas sobre o lugar do indivíduo na sociedade. Inspirado no existencialismo sartriano, que se reflete em romances como “O ventre”, o autor tematiza o problema da liberdade e da solidão. Na crônica, gênero em que também é mestre, tempera com erudição e malícia a abordagem do cotidiano.


                                     TEXTO  

                                A arte e a vida
  
            O cinema e a TV causam a violência na vida real? Ou é a vida real que inspira a violência no cinema e na TV? O assunto é vasto e complicado, mas, acima de tudo, lamentável. Em qualquer das hipóteses constatamos o precário verniz da civilização humana.
         Quando Caim matou Abel não havia cinema nem TV. A futilidade do primeiro crime da espécie humana, narrado na Bíblia, seria um incentivo à criminalidade? Relatos em livros históricos de outras civilizações, que não a ocidental cristã, também estão cheios de crimes equivalentes.
            Na outra ponta da corda, a leitura de feitos da cavalaria andante fez Dom Quixote sair pelo mundo tentando fazer justiça à sua maneira. Quem influencia quem?
           Infelizmente, a realidade humana é pouco recomendável. Não adianta culpar as expressões ficcionais desta realidade. Para uso próprio, há muito que troco de canal quando vejo na TV uma arma apontada para alguém, seja bandido ou mocinho. Evito até mesmo os westerns, que equivalem ao teatro grego em versão americanizada.
         Não creio estar perdendo muita coisa. Na arte, como na vida, tudo devia ser melhor. E isso será possível quando o homem for melhor.


                                  COMENTÁRIOS  

Abordando o tema da violência, o cronista indiretamente remete a um debate que remonta a Platão e Aristóteles. O primeiro afirmava que os poetas, ao expor as fraquezas dos deuses e heróis, constituíam mau exemplo para a juventude. O segundo considerava que essa exposição tinha um poder liberador (catártico). Cony se recusa a optar por um ou outro ponto de vista. Acha que a raiz do problema está próprio homem.

A metáfora destaca a superficialidade do processo civilizatório, que “lustra” porém não modifica a natureza do homem. Em termos freudianos, apenas lhe aumenta o mal-estar, já que é impossível a renúncia total aos impulsos (pulsões) destrutivos. Essa constatação torna irrelevante que se dê uma resposta às perguntas apresentadas no início.

A obviedade da informação aparentemente reforça que a realidade (ou seja, a vida) influencia a arte. O argumento a seguir apresentado, no entanto, confirma a complexidade da questão. Como não se pode considerar o assassinato de Abel por Caim como um primeiro estímulo para outros crimes, não existiria uma matriz real para a violência.

A transição entre os parágrafos se faz por meio de um operador argumentativo de caráter metafórico, equivalente a “por outro lado”. O autor agora enfoca a possibilidade oposta, ou seja, a de que a arte influencie a vida. Mesmo considerando a motivação livresca para o impulso justiceiro de Dom Quixote, ele prefere manter a questão no ar.   

A referência em primeira pessoa confirma o caráter subjetivo da crônica. Ela é um gênero em que prevalecem o impressionismo, a informalidade, o tom de conversa com o leitor. Não por acaso o cronista encerra o texto (e o debate) dando um depoimento sobre suas preferências televisivas e seu pacifismo. Para ele isso conta mais do que responder objetivamente ao questionamento proposto.

A ressalva se justifica por os westerns terem herdado do teatro grego a dimensão trágica. Nesse âmbito a violência é positiva, pois serve para testar os limites morais do homem.  Isso é bem diferente da gratuidade com que ela frequentemente aparece no cinema e na TV.

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