terça-feira, 14 de julho de 2020

Augusto dos Anjos, uma poética sombria

           Conta-se que, ao saber da morte de Augusto dos Anjos, Olavo Bilac pediu que lhe recitassem um poema do paraibano. Depois de ouvir “Versos a um coveiro”, teria comentado: “Fez bem em morrer. Não se perdeu grande coisa”. Descontado o tom anedótico desse episódio, não surpreende o pouco caso do parnasiano. Com sua poética áspera, marcada pelo vocabulário de mau gosto e por imagens de morte e deterioração, ninguém mais distante da “arte pela arte” do que o autor de “Eu e outras poesias”.
       Augusto dos Anjos começou simbolista, imitando Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. Ao publicar seu livro famoso, no entanto, preservou dessa escola apenas o soneto “Idealismo”. As outras composições nada tinham daquela busca pelo Inefável que marcava a estética simbolista; tampouco se inclinavam para a religião da forma.  Pelo contrário: na esteira de Charles Baudelaire, Cesário Verde, Guerra Junqueiro e outros, incorporavam às imagens o putrefato e o hediondo. Essas características viriam se articular ao prosaísmo e à tendência à paródia que marcaram a ruptura com a tradição. Ao expandir o território da poesia, confirmavam a verdade cara aos modernos segundo a qual não existem palavras poéticas, e sim uso poético das palavras.
        No entanto o poeta aliava o impulso para a modernidade a procedimentos formais que o ligavam ao passado -- como o uso de versos rimados e com métrica rigorosa. Esse contraste concorreu para que fosse praticamente ignorado pelos modernistas (Manuel Bandeira foi um dos poucos que escreveu sobre ele) e visto como um “caso” singular. Para muitos, ainda hoje, ele se distingue menos pelo artesanato dissonante do que por suas idiossincrasias. Nada mais falso do que esse tipo de simplificação.
         Uma forma de compreender a estética multifacetada de “Eu...” é atentar para o momento em que foi escrito. Na transição do século 19 para o 20 a ciência anunciava u                  m mundo novo, dominado pela razão e pela máquina, que apresentava o ser humano como efeito do determinismo biológico e ambiental.   
         Dessa visão do homem como produto de leis impessoais e mecânicas alimentou-se grande parte da melancolia do poeta. Há nele o impulso de auscultar e trazer à tona o que lateja na matéria como choro, lamento, tristeza -- fruto de uma culpa imemorial. Uma culpa que é de toda a humanidade e transforma a consciência num algoz impiedoso.
                                                                 
                          TEXTO  

                        O morcego

Meia noite. Ao meu quarto me recolho
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede...”
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Cicularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!


                        COMENTÁRIOS  

A sumária indicação do tempo, por meio de frase nominal, cria um clima de expectativa que se intensifica em razão da hora mencionada. “Meia noite”, tradicionalmente, associa-se a temor e mistério. É também um momento propício a que o indivíduo rumine as suas culpas.
A exclamação com que se inicia o segundo verso instaura um dramatismo que se mantém ao longo de toda a composição. A oração aditiva constitui uma aparente ruptura coesiva, pois não sequencia nenhuma outra. Mas a presença do conectivo “e” dá uma ideia de continuidade e aderência que se reforça por meio do dêitico “este”. A impressão é que o morcego, insaciável, sempre esteve ali.
 É frequente em Augusto dos Anjos a representação do sofrimento psíquico por meio de imagens ligadas ao corpo. Com isso ele concretiza a dor psicológica e foge à abstração. Ao designar metaforicamente o morcego como um “molho ígneo e escaldante” que lhe “morde” a garganta, busca apresentar um equivalente físico para a angústia mental.
Chama a atenção o alinhamento simétrico, no início e no fim do verso, entre o verbo (olho) e o substantivo (olho). Tal simetria remete à imagem especular de um olho que vê e ao mesmo tempo é visto. Se o morcego aparece “igual a um olho”, também observa quem o contempla e, sobretudo, com ele se confunde. A coerência dessa imagem está em que o bicho é, na verdade, uma projeção da mente do eu lírico.
O emprego de frases curtas concorre para sugerir o embate entre o indivíduo e sua consciência. Ao mesmo tempo, traduz a ansiedade ante a aproximação do molesto visitante. A impossibilidade de alcançá-lo é sugerida pelo cavalgamento entre o nono e o décimo verso, por meio do qual o verbo auxiliar (sugestivo da aproximação iminente) se separa do principal (indicativo de um contato superficial e efêmero).
A natureza horripilante do animal é indicada pela dupla metonímia -- “ventre” em lugar de “corpo”, e “parto” em vez de “feto”. A propósito, é comum em certas regiões do Nordeste chamar-se alguém muito feio de “um parto”.
Ao dizer que o morcego “é a consciência” o poeta explicitamente associa o plano metafórico ao plano real. Esse equacionamento faz com que o conceito pareça mais importante do que a imagem. É como se tudo evoluísse para o resumo feito no último terceto, em que se refere o inescapável poder do superego. Essa tendência à definição e à análise é um das marcas do poeta, que sobretudo nos poemas longos parece analisar e tentar compreender os seus delírios.

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