Conta-se
que, ao saber da morte de Augusto dos Anjos, Olavo Bilac pediu que lhe
recitassem um poema do paraibano. Depois de ouvir “Versos a um coveiro”, teria
comentado: “Fez bem em morrer. Não se perdeu grande coisa”. Descontado o tom
anedótico desse episódio, não surpreende o pouco caso do parnasiano. Com sua
poética áspera, marcada pelo vocabulário de mau gosto e por imagens de morte e
deterioração, ninguém mais distante da “arte pela arte” do que o autor de “Eu e
outras poesias”.
Augusto dos Anjos começou simbolista,
imitando Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. Ao publicar seu livro famoso,
no entanto, preservou dessa escola apenas o soneto “Idealismo”. As outras
composições nada tinham daquela busca pelo Inefável que marcava a estética
simbolista; tampouco se inclinavam para a religião da forma. Pelo contrário: na esteira de Charles Baudelaire,
Cesário Verde, Guerra Junqueiro e outros, incorporavam às imagens o putrefato e
o hediondo. Essas características viriam se articular ao prosaísmo e à
tendência à paródia que marcaram a ruptura com a tradição. Ao expandir o
território da poesia, confirmavam a verdade cara aos modernos segundo a qual
não existem palavras poéticas, e sim uso poético das palavras.
No entanto o poeta aliava o impulso
para a modernidade a procedimentos formais que o ligavam ao passado -- como o
uso de versos rimados e com métrica rigorosa. Esse contraste concorreu para que
fosse praticamente ignorado pelos modernistas (Manuel Bandeira foi um dos
poucos que escreveu sobre ele) e visto como um “caso” singular. Para muitos,
ainda hoje, ele se distingue menos pelo artesanato dissonante do que por suas
idiossincrasias. Nada mais falso do que esse tipo de simplificação.
Uma forma de compreender a estética
multifacetada de “Eu...” é atentar para o momento em que foi escrito. Na
transição do século 19 para o 20 a ciência anunciava u m mundo novo, dominado pela
razão e pela máquina, que apresentava o ser humano como efeito do determinismo
biológico e ambiental.
Dessa visão do homem como produto de leis
impessoais e mecânicas alimentou-se grande parte da melancolia do poeta. Há nele
o impulso de auscultar e trazer à tona o que lateja na matéria como choro,
lamento, tristeza -- fruto de uma culpa imemorial. Uma culpa que é de toda a
humanidade e transforma a consciência num algoz impiedoso.
TEXTO
O morcego
Meia noite. Ao meu quarto me recolho
Meu
Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da
sede,
Morde-me
a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar levantar outra
parede...”
- Digo. Ergo-me a tremer.
Fecho o ferrolho
E olho o teto. E
vejo-o ainda, igual a um olho,
Cicularmente sobre a minha
rede!
Pego
de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se
concentra.
Que
ventre produziu tão feio parto?!
A
Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à
noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso
quarto!
COMENTÁRIOS
A sumária indicação do tempo, por meio de frase
nominal, cria um clima de expectativa que se intensifica em razão da hora
mencionada. “Meia noite”, tradicionalmente, associa-se a temor e mistério. É
também um momento propício a que o indivíduo rumine as suas culpas.
A exclamação com que se inicia o segundo verso instaura um dramatismo
que se mantém ao longo de toda a composição. A oração aditiva constitui uma aparente
ruptura coesiva, pois não sequencia nenhuma outra. Mas a presença do conectivo “e”
dá uma ideia de continuidade e aderência que se reforça por meio do dêitico “este”.
A impressão é que o morcego, insaciável, sempre esteve ali.
É frequente em Augusto dos Anjos a representação do sofrimento
psíquico por meio de imagens ligadas ao corpo. Com isso ele concretiza a dor psicológica
e foge à abstração. Ao designar metaforicamente o morcego como um “molho ígneo e
escaldante” que lhe “morde” a garganta, busca apresentar um equivalente físico para
a angústia mental.
Chama a atenção o alinhamento simétrico, no início e no fim do
verso, entre o verbo (olho) e o substantivo (olho). Tal simetria remete à
imagem especular de um olho que vê e ao mesmo tempo é visto. Se o morcego
aparece “igual a um olho”, também observa quem o contempla e, sobretudo, com
ele se confunde. A coerência dessa imagem está em que o bicho é, na verdade, uma
projeção da mente do eu lírico.
O emprego de frases curtas concorre para sugerir o embate entre
o indivíduo e sua consciência. Ao mesmo tempo, traduz a ansiedade ante a
aproximação do molesto visitante. A impossibilidade de alcançá-lo é sugerida pelo
cavalgamento entre o nono e o décimo verso, por meio do qual o verbo auxiliar (sugestivo
da aproximação iminente) se separa do principal (indicativo de um contato superficial
e efêmero).
A natureza horripilante do animal é indicada pela dupla metonímia
-- “ventre” em lugar de “corpo”, e “parto” em vez de “feto”. A propósito, é
comum em certas regiões do Nordeste chamar-se alguém muito feio de “um parto”.
Ao dizer que o morcego “é a consciência” o poeta explicitamente associa
o plano metafórico ao plano real. Esse equacionamento faz com que o conceito pareça
mais importante do que a imagem. É como se tudo evoluísse para o resumo feito
no último terceto, em que se refere o inescapável poder do superego. Essa
tendência à definição e à análise é um das marcas do poeta, que sobretudo nos
poemas longos parece analisar e tentar compreender os seus delírios.
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