José
Lins do Rego Cavalcanti (1901-1957) é um dos maiores nomes da ficção brasileira.
Seus romances, que compõem o ciclo da cana-de-açúcar, relatam as mudanças sociais
e humanas ocorridas no Nordeste com a transformação do engenho em usina. Neto
de senhor de engenho, ele vivenciou profundamente as mudanças trazidas pelo
novo modelo econômico.
José Lins era leitor de Proust, entre outros autores
clássicos, e fez da memória a força propulsora da sua ficção. O memorialismo ganha destaque em sua obra desde
o romance de estreia, “Menino de engenho”, que narra a infância de Carlinhos (alter
ego do autor). Marcado pela morte da mãe, assassinada pelo marido ciumento, o
garoto encontra na introversão uma forma de se refugiar dos conflitos na casa-grande.
Seus tormentos se intensificam devido à precocidade das experiências sexuais, narradas
com tintas naturalistas.
O
autor pertence à segunda geração do Modernismo. Uma característica dos
escritores desse período, além da preocupação social, é o uso de uma linguagem
pautada na oralidade. Ao narrar os fatos como eles surgem na memória, “com os
jeitos e as maneiras simples dos cegos poetas”, o autor o concorre para a expressão
de uma língua brasileira (além de dar voz aos que a sociedade historicamente excluía).
No universo de José Lins convivem
beatos, cangaceiros, mulheres da vida, trabalhadores das lavouras de cana, enfim,
toda uma gama de personagens típicos de uma região marcada por fundos contrastes
sociais. Num estilo isento de pregações doutrinárias, o autor enfatiza a investigação
psicológica e, com isso, cria um painel rico de densidade humana.
“Usina”, com que se fecha o ciclo cana-de-açúcar,
é uma das melhores demonstrações da interdependência, em sua obra, entre os
fatores sociais e a dimensão humana. O personagem Juca ilustra bem isso; o malogro
em preservar a usina, jogando por terra o capital que levantou ao hipotecar as
terras da família, decorre basicamente de suas falhas morais.
TEXTO
Usina
Os conhecidos vieram ver o negro de
Avelina, que chegara de Recife. Correra a notícia de que ele viera rico, buscar
a mãe e os irmãos. Na noite da chegada Ricardo ficou até tarde, contando as coisas. Os trens de cana passavam
apitando. Da casa de d. Inês ouvia-se o barulho da usina. Só parava na festa de
Natal.
Generosa falou pelos deserdados da casa
de d. Inês. Falou da vida que levavam:
- Acabou-se
o tempo bom, menino. Desde que o velho fechou os olhos que a gente pena.
Mandaram até cozinheira da cidade. Eu até penso muita vez que o dr. Juca não é
do sangue da família. Vi aquele menino nos cueiros, fiz muita papa para ele.
Romana era quem dava de mamar. E botou a gente para fora. A gente entulhava na rua. Pergunte
a Avelina o que sucedeu com Salomé? Tu pensas que pegaram o negro para casar?
A gente ficou igual ao povo do Pinheiro. Nem parecia que Salomé era cria da
casa. Podiam pegar o cabra e casar. A tua irmã está feito rapariga, como as
outras. E a comida que a gente come? Os moleques de Joana e de Avelina tomando
conta da casa. Trancaram a despensa. (...)
Mãe Avelina também tinha as suas
queixas. No quarto, em que ela dormia, estava a rede de Rafael.
Ricardo dormiu na rede do irmão, que se
acomodou na cama da mãe. E na rede escura de sujo foi ele pensando na vida que
lhe chegava para viver. Apesar de tudo aquilo era melhor do que a casa de
Jesuíno. A tia Generosa tinha suas mágoas da casa-grande, Avelina era a mesma paciência
de sempre, não possuindo a coragem da tia Generosa para falar das coisas.
Parecia que ela tinha medo de alguém. Ele puxara à
mãe, era como ela, sempre com uma força maior do que ele manobrando o que
desejava.
De madrugada ouviu o apito grosso da usina,
os trens de cana passavam rangendo nos trilhos e o
rumor da fábrica chegava aos seus ouvidos com nitidez. (...) A Várzea
agora era só cana que nem chegava a se ver o fim. (...) No tempo do banguê, às
seis horas tiravam a última têmpera, os carros de boi paravam às cinco, o motor
se poupava para o outro dia. Usina tinha que ser de dia e de noite. (José Lins
do Rego, Usina, p. 146-7)
COMENTÁRIOS
“Contar as coisas” é também o que faz o romancista ao reproduzir
a fala espontânea do povo. A narrativa de Ricardo enfoca a sua experiência na
capital pernambucana, onde se envolveu em disputas políticas que o levaram à
prisão de Fernando de Noronha. O relato do moleque frustra a ingênua
expectativa dos conhecidos.
O velho a que Generosa se refere é o coronel José Paulino, cuja
morte permitiu que seu filho Juca desse início às transformações no engenho. A
negra é nostálgica de um tempo em que parecia menor a diferença entre senhores
e escravos. A convivência entre uns e outros na casa-grande dava a esses
últimos a ilusão de igualdade.
A escolha do verbo enfatiza o rebaixamento social e humano dos
empregados. Excluídos da casa de d. Inês, que era um espaço contíguo à
casa-grande, eles se veem reduzidos a entulho, lixo.
Uma das razões para o saudosismo de Generosa é que o coronel não
era indiferente ao destino dos que lhe serviam. Ele fazia a defesa dos mais
fracos e, de alguma forma, promovia a justiça. No seu tempo, o defloramento da
irmã de Ricardo não a condenaria à prostituição. Esse interesse pelos outros se
contrapõe à insensibilidade com que o filho trata os empregados.
José Lins do Rego é um autor trágico. Há em seus personagens (nuns
mais do que noutros) o sentimento de uma “força maior”, que os ultrapassa e interfere
em suas escolhas. Não se trata de um mero condicionamento socioeconômico, mas
de um impulso fundado na culpa e orientado pela noção do Bem e do Mal. O
Ricardo temeroso e inibido que puxou à mãe tem no desfecho do romance um gesto heroico,
que lhe custa a vida: abre a porta do barracão para que os esfomeados entrem e
o saqueiem.
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