terça-feira, 14 de julho de 2020

José Lins do Rego, um retrato pungente do Nordeste

       José Lins do Rego Cavalcanti (1901-1957) é um dos maiores nomes da ficção brasileira. Seus romances, que compõem o ciclo da cana-de-açúcar, relatam as mudanças sociais e humanas ocorridas no Nordeste com a transformação do engenho em usina. Neto de senhor de engenho, ele vivenciou profundamente as mudanças trazidas pelo novo modelo econômico.      
        José Lins era leitor de Proust, entre outros autores clássicos, e fez da memória a força propulsora da sua ficção.  O memorialismo ganha destaque em sua obra desde o romance de estreia, “Menino de engenho”, que narra a infância de Carlinhos (alter ego do autor). Marcado pela morte da mãe, assassinada pelo marido ciumento, o garoto encontra na introversão uma forma de se refugiar dos conflitos na casa-grande. Seus tormentos se intensificam devido à precocidade das experiências sexuais, narradas com tintas naturalistas.   
       O autor pertence à segunda geração do Modernismo. Uma característica dos escritores desse período, além da preocupação social, é o uso de uma linguagem pautada na oralidade. Ao narrar os fatos como eles surgem na memória, “com os jeitos e as maneiras simples dos cegos poetas”, o autor o concorre para a expressão de uma língua brasileira (além de dar voz aos que a sociedade historicamente excluía).  
       No universo de José Lins convivem beatos, cangaceiros, mulheres da vida, trabalhadores das lavouras de cana, enfim, toda uma gama de personagens típicos de uma região marcada por fundos contrastes sociais. Num estilo isento de pregações doutrinárias, o autor enfatiza a investigação psicológica e, com isso, cria um painel rico de densidade humana.  
      “Usina”, com que se fecha o ciclo cana-de-açúcar, é uma das melhores demonstrações da interdependência, em sua obra, entre os fatores sociais e a dimensão humana. O personagem Juca ilustra bem isso; o malogro em preservar a usina, jogando por terra o capital que levantou ao hipotecar as terras da família, decorre basicamente de suas falhas morais.

                          TEXTO

                            Usina

            Os conhecidos vieram ver o negro de Avelina, que chegara de Recife. Correra a notícia de que ele viera rico, buscar a mãe e os irmãos. Na noite da chegada Ricardo ficou até tarde, contando as coisas. Os trens de cana passavam apitando. Da casa de d. Inês ouvia-se o barulho da usina. Só parava na festa de Natal.
         Generosa falou pelos deserdados da casa de d. Inês. Falou da vida que levavam:
         - Acabou-se o tempo bom, menino. Desde que o velho fechou os olhos que a gente pena. Mandaram até cozinheira da cidade. Eu até penso muita vez que o dr. Juca não é do sangue da família. Vi aquele menino nos cueiros, fiz muita papa para ele. Romana era quem dava de mamar. E botou a gente para fora. A gente entulhava na rua. Pergunte a Avelina o que sucedeu com Salomé? Tu pensas que pegaram o negro para casar? A gente ficou igual ao povo do Pinheiro. Nem parecia que Salomé era cria da casa. Podiam pegar o cabra e casar. A tua irmã está feito rapariga, como as outras. E a comida que a gente come? Os moleques de Joana e de Avelina tomando conta da casa. Trancaram a despensa. (...)
Mãe Avelina também tinha as suas queixas. No quarto, em que ela dormia, estava a rede de Rafael.
Ricardo dormiu na rede do irmão, que se acomodou na cama da mãe. E na rede escura de sujo foi ele pensando na vida que lhe chegava para viver. Apesar de tudo aquilo era melhor do que a casa de Jesuíno. A tia Generosa tinha suas mágoas da casa-grande, Avelina era a mesma paciência de sempre, não possuindo a coragem da tia Generosa para falar das coisas. Parecia que ela tinha medo de alguém. Ele puxara à mãe, era como ela, sempre com uma força maior do que ele manobrando o que desejava.
De madrugada ouviu o apito grosso da usina, os trens de cana passavam rangendo nos trilhos e o rumor da fábrica chegava aos seus ouvidos com nitidez. (...) A Várzea agora era só cana que nem chegava a se ver o fim. (...) No tempo do banguê, às seis horas tiravam a última têmpera, os carros de boi paravam às cinco, o motor se poupava para o outro dia. Usina tinha que ser de dia e de noite. (José Lins do Rego, Usina, p. 146-7)

                       COMENTÁRIOS

 “Contar as coisas” é também o que faz o romancista ao reproduzir a fala espontânea do povo. A narrativa de Ricardo enfoca a sua experiência na capital pernambucana, onde se envolveu em disputas políticas que o levaram à prisão de Fernando de Noronha. O relato do moleque frustra a ingênua expectativa dos conhecidos.
O velho a que Generosa se refere é o coronel José Paulino, cuja morte permitiu que seu filho Juca desse início às transformações no engenho. A negra é nostálgica de um tempo em que parecia menor a diferença entre senhores e escravos. A convivência entre uns e outros na casa-grande dava a esses últimos a ilusão de igualdade.
A escolha do verbo enfatiza o rebaixamento social e humano dos empregados. Excluídos da casa de d. Inês, que era um espaço contíguo à casa-grande, eles se veem reduzidos a entulho, lixo.
Uma das razões para o saudosismo de Generosa é que o coronel não era indiferente ao destino dos que lhe serviam. Ele fazia a defesa dos mais fracos e, de alguma forma, promovia a justiça. No seu tempo, o defloramento da irmã de Ricardo não a condenaria à prostituição. Esse interesse pelos outros se contrapõe à insensibilidade com que o filho trata os empregados.
José Lins do Rego é um autor trágico. Há em seus personagens (nuns mais do que noutros) o sentimento de uma “força maior”, que os ultrapassa e interfere em suas escolhas. Não se trata de um mero condicionamento socioeconômico, mas de um impulso fundado na culpa e orientado pela noção do Bem e do Mal. O Ricardo temeroso e inibido que puxou à mãe tem no desfecho do romance um gesto heroico, que lhe custa a vida: abre a porta do barracão para que os esfomeados entrem e o saqueiem.

A referência aos trens de cana destaca o novo ritmo de produção instaurado pela fábrica. Com as transformações na economia, intensifica-se a monocultura canavieira para saciar a fome das moendas. Ao contrário do que acontecia no tempo dos banguês, agora não há mais pausa no trabalho. A usina não opera apenas para a subsistência; visa sobretudo ao lucro, que deve ser  cada vez maior. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Paulo Mendes Campos, a erudição na crônica

                Paulo Mendes Campos é um dos maiores nomes da crônica brasileira. Pertenceu à chamada geração mineira de 45, em que também s...