terça-feira, 14 de julho de 2020

Antônio Maria, um profissional da solidão

Antônio Maria de Araújo Morais nasceu a 17 de março de 1921, em Recife (PE). Na infância dividia o tempo entre as brincadeiras no engenho do avô e as aulas no Colégio Marista. Aprendeu piano e francês, como era moda entre as crianças bem-nascidas. Estudou agronomia e chegou a estagiar na usina da família como técnico de irrigação. Depois, com a crise econômica, viu os parentes vender os bens para saldar as dívidas.
Na adolescência, satisfazia seu lado boêmio frequentando o Cabaré Imperial e o bar Gambrínus. Por essa época atuou na Rádio Clube de Pernambuco como locutor e apresentador de programas musicais. Ansioso por deixar a província, viajou para o Rio de Janeiro em 1940, onde trabalhou como locutor esportivo na Rádio Ipanema. Depois de uma breve estada em Recife, passou um tempo em Fortaleza e voltou definitivamente para o Rio em 1944, onde começou a trabalhar em jornais e na televisão.   
Antônio Maria foi homem de muitas habilidades, mas se destacou mesmo como compositor e cronista. São dele algumas das mais belas composições do nosso cancioneiro popular, como Ninguém me ama, Manhã de carnaval e Valsa de uma cidade, as duas últimas em parceria com Ismael Neto.
Suas crônicas revelam um temperamento sensível à natureza e sobretudo à beleza das mulheres. São textos nos quais, associando o lúdico ao poético, o cronista aborda o ciúme, a traição conjugal, o malogro das relações amorosas. Ele se revela também um crítico mordaz dos hábitos pequeno-burgueses e do cotidiano de uma cidade que, em nome do desenvolvimento, impunha às pessoas uma rotina opressiva.  
O cronista tematiza sobretudo a solidão inerente ao ser humano. Os amores vêm e vão, mas o vazio permanece – um vazio que se reflete no olhar magoado e remete à nostalgia da pureza perdida. Para ele, “a grande felicidade seria (...) a de estar-se inteiramente só, em companhia de alguém”. Como é impossível viver esse paradoxo, parece não haver saída para a solidão. Resta à mulher o papel de amiga ou de parceira sexual, mas nenhum deles é suficiente para tornar o homem menos só.   

                                                            
                             TEXTO

                  Eram cinco e quinze

       Tudo entre nós havia que continuar sendo casual. Não tínhamos que marcar encontro das cinco e quinze, no tal bar, tido e havido como discreto. Resultado: aquele sem jeito, aquela falta de ar, aquela vontade de voltar para casa, que nós, apesar de lúcidos e afins, não conseguimos explicar. Mas que foi engraçado, foi.
      Primeiro, para termos direito a uma mesa, o garçom exigiu que fizéssemos uma despesa qualquer. Dinheiro havia. O que nos faltava era apetência. Deixamos a cargo do garçom o preço que haveríamos de pagar pelo local e pela discrição do nosso rendez-vous. Podia ter estourado um Moët & Chandon, mas, homem cauto, olhando-me nas alpargatas, trouxe-nos uma coca-cola tamanho família e um sanduíche de grande montagem (...).
         Andou o tempo e nós continuamos naquela conversinha de Alvarenga e Ranchinho, que não vende nem compra coisa alguma. Repare bem, o que dissemos não valia mais do que: “ehh, cumpade... pois é... tá sorto”. E por quê? Prometemos, no dia seguinte, uma explicação telefônica que nos reabilitasse, um para o outro e cada qual perante si mesmo. Infelizmente, prezada senhora, a explicação encontrada não é das mais honrosas.
         Primeiro, para esse negócio de namoro, é preciso ter peito. Nós não temos, hélas! Depois, é necessário, ao menos no começo, que um leve o outro no bico. E nós não podemos. Somos muito puros, um no outro. Muito iguais, muito devassados, um para o outro. Podemos falar, sim, já falamos. Mas, na realidade, não temos nada que contar um ao outro. Em nosso caso, desgraçadamente, seria chegar, abraçar e deixar sentir. Mas cadê peito? Continuemos, então, a viver dos acasos, até que um deles, um dia, seja o mais importante e cumpra, afinal, o nosso fado.


                                               COMENTÁRIOS

O emprego da gradação e a repetição do pronome demonstrativo visam demonstrar a intensidade do constrangimento do casal. Concorre para a representação desse mal-estar o uso dêitico do pronome, que deixa ao leitor a possibilidade de ampliar na imaginação o que fora vivido pelos dois.
  
O apelo ao registro oral é uma das características do gênero crônica, no qual se busca pela espontaneidade e o tom de conversa uma comunicação imediata com o leitor. São marcas de oralidade, nessa passagem, o uso do “que” como partícula de realce e a repetição do verbo.

 “Apetência” em duplo sentido, como se vê com o desenrolar da crônica. A falta de apetite para a comida antecipa (ou reflete) a inabilidade dos dois para dar consequências sexuais ao encontro.
   
O diálogo da dupla de cantores espelha o gauchismo do casal, que não encontra o que dizer um ao outro. Ambos, a seu modo, são também caipiras, no sentido de que preservam uma pureza que não condiz com a audácia requerida pela ocasião.

No emprego do vocativo, que se justifica por ser a crônica escrita em forma de carta, o pronome escolhido sugere respeito e distanciamento. É uma alternativa à intimidade que não pôde se estabelecer. Parece também camuflar o tom repreensivo com que o emissor reitera a inutilidade das palavras para explicar o que houve.

 “Ter peito” e “levar no bico” são expressões populares que designam, respectivamente, a ousadia e a lábia.  Fazem parte de uma estratégia de conquista que não se harmoniza com a sinceridade de intenções que há nos dois.

A referência ao acaso repete o início do texto, dando-lhe uma estrutura circular. É um meio de sugerir que nada está definido entre eles e deixar ao sabor das circunstâncias o futuro da relação.


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