terça-feira, 25 de agosto de 2020

Lygia Fagundes Telles, a vida é uma bolha ao vento

  

Lygia Fagundes Telles, nascida em São Paulo a 19 de abril de 1923, foi a quarta filha do casal Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário Silva Jardim de Moura. Seu gosto por contar histórias veio do tempo em que ouvia as narrativas contadas pelas empregadas e por outras crianças. Influenciada por esses relatos, que falavam de lobisomens e mulas sem cabeça, começou a criar seus próprios textos.  Muitos deles foram escritos nas últimas páginas dos cadernos escolares para serem contados depois na roda familiar.

         Em 1938, dois anos depois que seus pais se separaram, a escritora publicou o primeiro livro de contos, “Porão e Sobrado”. Trabalhou no Departamento Agrícola do estado de São Paulo a fim de custear os estudos e se formar em Educação Física, em 1941. Nesse ano iniciou o curso de Direito  e começou a participar de debates literários que a levaram a conhecer Mário e Oswald de Andrade. Seu primeiro romance, “Ciranda de Pedra”, foi escrito  na fazenda Santo Antônio, em Araras, onde se reuniramam alguns dos principais representantes do Modernismo.

Lygia tematiza a solidão familiar, as opões políticas, os desencontros da adolescência, a violência das relações sociais. Seus contos são recortes líricos ou pungentes em que a autora procura demonstrar a fragilidade das escolhas humanas – entre elas, a do amor. O amor é frágil (tem a estrutura de uma bolha de sabão); descobri-lo é se defrontar com o mais íntimo da natureza humana e se reconhecer dependente do outro.

         Para o poeta e crítico José Paulo Paes, um dos méritos da escritora foi “ter dado estofo convincentemente humano às suas personagens burguesas, salvando-as da estereotipia a que as costuma confinar a ficção ideologicamente engajada”. Ela conseguiu isso por se centrar nos dramas individuais, que se desenrolam para além dos condicionamentos de classe. Entre as fontes de tensão, está o exercício da liberdade. Ser livre é se comprometer radicalmente; o erro de determinados escolhas tem repercussões definitivas e, quando não é mais possível mudar o rumo das coisas, determina a diferença entre felicidade e infelicidade. É o que se vê, por exemplo, no doloroso apanhado que a protagonista do conto “Apenas um saxofone” faz da própria vida.

   

                          TEXTO      

              Apenas um saxofone

                     (fragmento)

 

           Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho também um diamante do tamanho de um ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de fivela, o iate – trocaria tudo, aneis e dedos, para poder ouvir um pouco que fosse a música do saxofone. Nem seria preciso vê-lo, juro que nem pediria tanto, eu me contentaria em saber que estava vivo, vivo em algum lugar, tocando seu saxofone.

Quero deixar bem claro que a única coisa que existe para mim é a juventude, tudo o mais é besteira, lantejoulas, vidrilho. Posso fazer mil plásticas e não resolve, no fundo é a mesma bosta, só existe a juventude. Ele era a minha juventude mas naquele tempo eu não sabia, na hora a gente nunca sabe nem pode mesmo saber, fica tudo natural como o dia que sucede à noite, como o sol, a lua, eu era jovem e não pensava nisso como não pensava em respirar. Alguém por acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa, eu respirava tão bem... (Apenas um saxofone, p. 65)

 

          COMENTÁRIOS

No conto, uma mulher rica e solitária faz uma espécie de acerto de contas com a vida. Ela se recrimina por ter abandonado um saxofonista, que foi seu grande amor, e se casado por interesse com outra pessoa. O desalento com que lembra essa perda é realçado pelo vocativo, pelas interrogações repetidas e pelas elipses do sujeito, que remetem à figura do músico.

 Nesse exemplo de intertextualidade, a fonte é a conhecida máxima “Vão-se os anéis e fiquem os dedos”. Ao alterar-lhe a forma, a narradora suprime o que a sentença comporta de resignação, ou seja, aceitação de um mal menor como alternativa a um mal maior. Para a solidão em que ela se encontra, parece não haver consolo. Vale ressaltar a ambiguidade semântica da palavra “anéis”, que se pode ler em sentido também literal.  

 O uso do monólogo interior direto concorre para revelar a agitação emocional da personagem. São marcas dessa estratégia discursiva o emprego da primeira pessoa e a pontuação em desacordo com a norma (quanto ao uso de vírgulas e pontos, por exemplo). A mulher fala a si própria mesmo quando se dirige a um suposto juiz a quem assevera a humildade das suas pretensões.

 O sentido de besteira (tolice) é amplificado metaforicamente em lantejoulas e vidrilho. Esse conjunto sugere uma vida insignificante e se opõe à ideia de juventude, que a personagem referiu um pouco antes e com a qual identificará o saxofonista.

 A plástica é um procedimento comum entre as pessoas a cuja classe a narradora pertence. A referência hiperbólica a esse tipo de intervenção cirúrgica não deixa de ser uma forma de ironia; a narradora critica os que a ele se submetem com o ingênuo propósito de resgatar a juventude perdida.

O uso de termos chulos e grosseiros (disfemismo) é uma marca de oralidade. Geralmente caracteriza as pessoas de pouca educação ou baixa classe social. Pode servir a diferentes propósitos estilísticos. Nessa passagem, rompe com o formalismo das aparências e realça a agressividade que a personagem dirige a si e à classe a que pertence.


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Lêdo Ivo, lirismo e engajamento social

 

          Lêdo Ivo nasceu a 18 de fevereiro de 1924, em Maceió (AL) e faleceu em 23 de dezembro de 2012 em Sevilha (Espanha). Estreou em 1944, com Imaginações; além de escrever poemas, crônicas, contos e romances, dedicou-se ao jornalismo e à tradução. Ocupou a Cadeira nº 10 da Academia Brasileira de Letras,      

         O poeta pertence à terceira geração do Modernismo. Sua obra mostra o equilíbrio entre as inovações formais da primeira geração e o engajamento da segunda.  Há nela, conforme assinala o crítico Tristão de Athayde, o propósito de revalorizar as palavras e criar novas imagens.  

       O alagoano associa o novo ao tradicional, o que justifica a sua preferência pelo soneto. Ele mescla esse tipo de composição a poemas longos, de metros variados, e à brevidade do haicai. São poemas que têm em comum o rigor da linguagem. A preocupação com a correção linguística levou-o certa vez a confessar que sentia “abalos sísmicos em suas florestas interiores ao ouvir confrades pronunciarem impropriedades como ‘de maneiras que’”. 

         A crítica costuma destacar em Ledo Ivo o compromisso com a subjetividade e a exploração do passado. O sentimento de ser único, só, e de se confrontar com o mundo, é uma característica da sua voz poética. Esse egocentrismo se alterna com o protesto contra as desigualdades sociais. Percebe-se em muitos dos seus versos o silencioso clamor dos excluídos, que perturba a consciência do autor tanto quanto as dúvidas sobre a existência de Deus.

          A desigualdade entre os homens, por sinal, concorre para que o poeta duvide de que haja um Ser superior. “Não somos dignos de piedade/ Melhor fora que Deus não existisse/ e vivêssemos todos fora de Seu olhar incômodo” – escreve ele num dos poemas de “A noite misteriosa”. A impotência em tornar melhor o homem não raro o faz optar pela ironia.

(Chico Viana, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, é professor de português e assina no site de “Língua” o blog “Na ponta do lápis” www.chicoviana.com)

                  TEXTO

              Os Morcegos

Os morcegos se escondem entre as cornijas
da alfândega. Mas onde se escondem os homens,
que contudo voam a vida inteira no escuro,

chocando-se contra as paredes brancas do amor?

A casa de nosso pai era cheia de morcegos
pendentes, como luminárias, dos velhos caibros
que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.
Estes filhos chupam o nosso sangue”, suspirava meu pai.

Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero
 que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos
 (meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige
 o suor do semelhante mesmo na escuridão?

No halo de um seio jovem como a noite
esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz
do farol
o homem guarda as moedas douradas de seu amor.

Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda

 o dia ofendido.

 

Ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito

 irmãos)
a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.

Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.

E entre as nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.

 

                      COMENTÁRIOS

 

A referência aos homens, como um todo, ilustra um traço comum no poeta: a interdependência entre o pessoal e o coletivo. Conforme se vê ao longo do texto, o que se aplica ao microcosmo da família cabe também no macrocosmo das relações sociais.  

A analogia entre homem e morcego se instaura mediante a indicação da escureza comum a ambos. Só que no homem o escuro é de natureza afetiva, espiritual; simboliza o egoísmo, a impossibilidade de amar. O branco anteparo do amor constitui uma antítese ao voo de quem é cego à consideração do outro.    

A descrição da casa, onde à noite chovia pelo telhado, realça a precariedade do espaço da família. O que o poeta rememora tem muito pouco de idealizado, e na cena familiar o que prevalece é o ressentimento paterno. A lembrança dos morcegos, com os quais os filhos se confundem, remete a uma visão desencantada da infância, do homem, do mundo.

A alusão bíblica antecipa o tom dessa estrofe; o homem não pode condenar um animal que faz o mesmo que ele. A solidariedade humana falha não apenas no âmbito da família; deixa de se cumprir também no domínio das relações sociais. Explorar o trabalho do semelhante é uma forma de “tirar-lhe o sangue”.

O autor ironiza os que no discurso se referem ao outro como irmão, porém na prática “se alimentam” dele.  A ironia se prolonga no uso do adjetivo “comunitário” (uma transposição de registro que lembra João Cabral de Melo Neto, companheiro de geração do poeta). Na ótica dos gananciosos, o que torna os homens semelhantes é a possibilidade de os explorar.   

A quarta estrofe responde à indagação feita no segundo verso do poema (sobre onde os homens se escondem). Esconder-se é guardar, guardar-se, usurariamente reter sob o travesseiro (imagem de indiferença e posse) a moeda de um amor que não se distribui aos outros. A ideia reitera o motivo da escureza, que como vimos aproxima o homem do morcego.

Paulo Mendes Campos, a erudição na crônica

                Paulo Mendes Campos é um dos maiores nomes da crônica brasileira. Pertenceu à chamada geração mineira de 45, em que também s...