Lygia Fagundes Telles,
nascida em São Paulo a 19 de abril de 1923, foi a quarta filha do casal Durval
de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário Silva Jardim de Moura. Seu gosto por
contar histórias veio do tempo em que ouvia as narrativas contadas pelas empregadas
e por outras crianças. Influenciada por esses relatos, que falavam de lobisomens
e mulas sem cabeça, começou a criar seus próprios textos. Muitos deles foram escritos nas últimas páginas
dos cadernos escolares para serem contados depois na roda familiar.
Em 1938, dois anos depois que seus pais se separaram, a
escritora publicou o primeiro livro de contos, “Porão e Sobrado”. Trabalhou no
Departamento Agrícola do estado de São Paulo a fim de custear os estudos e se
formar em Educação Física, em 1941. Nesse ano iniciou o curso de Direito e começou a participar de debates literários
que a levaram a conhecer Mário e Oswald de Andrade. Seu primeiro romance, “Ciranda
de Pedra”, foi escrito na fazenda Santo Antônio, em Araras, onde se reuniramam alguns
dos principais representantes do Modernismo.
Lygia tematiza a solidão familiar,
as opões políticas, os desencontros da adolescência, a violência das relações
sociais. Seus contos são recortes líricos
ou pungentes em que a autora procura demonstrar a fragilidade das escolhas
humanas – entre elas, a do amor. O amor é frágil (tem a estrutura de uma bolha
de sabão); descobri-lo é se defrontar com o mais íntimo da natureza humana e se
reconhecer dependente do outro.
Para
o poeta e crítico José Paulo Paes, um dos méritos da escritora foi “ter dado
estofo convincentemente humano às suas personagens burguesas, salvando-as da
estereotipia a que as costuma confinar a ficção ideologicamente engajada”. Ela
conseguiu isso por se centrar nos dramas individuais, que se desenrolam para
além dos condicionamentos de classe. Entre as fontes de tensão, está o
exercício da liberdade. Ser livre é se comprometer radicalmente; o erro de
determinados escolhas tem repercussões definitivas e, quando não é mais
possível mudar o rumo das coisas, determina a diferença entre felicidade e infelicidade.
É o que se vê, por exemplo, no doloroso apanhado que a protagonista do conto “Apenas
um saxofone” faz da própria vida.
TEXTO
(fragmento)
Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho também um
diamante do tamanho de um ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de
fivela, o iate – trocaria tudo, aneis e dedos,
para poder ouvir um pouco que fosse a música do saxofone. Nem seria preciso
vê-lo, juro que nem pediria tanto,
eu me contentaria em saber que estava vivo, vivo em algum lugar, tocando seu
saxofone.
Quero deixar bem claro que a única coisa que existe
para mim é a juventude, tudo o mais é besteira, lantejoulas, vidrilho. Posso fazer mil plásticas e
não resolve, no fundo é a mesma bosta,
só existe a juventude. Ele era a minha juventude mas naquele tempo eu não
sabia, na hora a gente nunca sabe nem pode mesmo saber, fica tudo natural como
o dia que sucede à noite, como o sol, a lua, eu era jovem e não pensava nisso
como não pensava em respirar. Alguém por acaso fica atento ao ato de respirar?
Fica, sim, mas quando a respiração se esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa, eu respirava tão
bem... (Apenas um saxofone, p. 65)
COMENTÁRIOS
No conto, uma mulher rica e solitária faz uma espécie de acerto de contas com a vida. Ela se recrimina por ter abandonado um saxofonista, que foi seu grande amor, e se casado por interesse com outra pessoa. O desalento com que lembra essa perda é realçado pelo vocativo, pelas interrogações repetidas e pelas elipses do sujeito, que remetem à figura do músico.
O uso de termos chulos e grosseiros (disfemismo) é uma marca de oralidade. Geralmente caracteriza as pessoas de pouca educação ou baixa classe social. Pode servir a diferentes propósitos estilísticos. Nessa passagem, rompe com o formalismo das aparências e realça a agressividade que a personagem dirige a si e à classe a que pertence.