quarta-feira, 29 de julho de 2020

Gregório de Matos, entre o céu e a terra

Gregório de Matos traduz como poucos as contradições do homem barroco. Seus poemas associam o lirismo amoroso e a contrição religiosa à sátira irreverente, que por vezes descamba para a pornografia. Neles se expressa a dualidade corpo/alma típica da escola literária à qual o poeta se filiou.

Gregório foi sobretudo um crítico de costumes. Sua disposição em denunciar  desmandos administrativos e mazelas de caráter foi facilitada pela natureza da sociedade em que viveu, marcada pelo desregramento moral. Na Bahia do século 17, eram enormes as contradições de uma sociedade que pregava a renúncia aos bens materiais ao mesmo tempo que deles se recheava.  

O poeta investia sobretudo contra os portugueses que exploravam a Colônia, subtraindo-lhe o açúcar e o pau-brasil, mas não poupava também os nativos; criticava o servilismo dos mulatos diante dos nobres, a usura dos comerciantes e o licenciosidade sexual das mulheres.  

No Barroco há duas grandes correntes: a cultista, marcada pelos jogos formais; e a conceptista, caracterizada pela sutileza dos conceitos. Costuma-se vincular Gregório de Matos à primeira, embora nem sempre seja fácil distinguir em seus versos uma vertente da outra. Por vezes as duas tendências se fundem, como no famoso soneto dedicado a um braço perdido, do Menino Jesus, que foi desacatado por infiéis na Bahia. A sequência de imagens que articulam parte e todo evolui, dialeticamente, a partir do conceito segundo o qual “o todo sem a parte não é todo”.

A polarização entre o divino e o mundano transparece na crítica que o poeta faz a representantes da Igreja. Seus alvos preferidos são os religiosos que não honram o voto que fizeram e, com isso, concorrem para trazer descrédito à religião. A postura moralista e até piedosa que assume nesse tipo de composições confirma a dualidade em que se debate o seu espírito.

 

                             TEXTO      

 

                   Soneto

(Aos missionários em ocasião que corriam a Via Sacra.)

Via de perfeição é a Sacra Via,

via do Céu, caminho da verdade,

mas ir ao Céu com tal publicidade,

mais que à virtude o boto à hipocrisia.

 

O ódio é da alma infame companhia,

a paz deixou-a Deus à cristandade;

mas arrastar por força u’a vontade,

em vez de caridade é tirania.

 

O dar pregões no púlpito é indecência:

Que de Fulano”? e “Venha aqui Sicrano

porque pecado e pecador se veja.

 

É próprio de um porteiro de audiência,

e se nisto mal digo, ou mal me engano,

eu me someto à Santa Madre Igreja.

 

                            COMENTÁRIOS           

 

As duas primeiras estrofes reconhecem a religião como uma forma deaprimoramento individual e harmonia entre os homens. Contestam, no entanto, a atitude dos missionários que, na cerimônia da Via Sacra, se excedem no empenho com o qual buscam converter as pessoas.

Com “ir ao Céu”, o poeta ironiza os fiéis que participam da Via Sacra     sem espírito cristão, ou seja, motivados apenas pela propaganda dos missionários. Tal propaganda, em vez de despertar a autêntica virtude, induz à hipocrisia.

O uso da antítese e das conjunções adversativas realça o contraste entre as virtudes cristãs e a atitude dos missionários. Esse tipo de oposição fundamenta o argumento ad personam, muito usado também pelo Padre Antônio Vieira para criticar os religiosos que pregam uma coisa e fazem outra.

O poeta compara os missionários que transformam as pregações em pregões aos vendedores que anunciam seus produtos. Posteriormente, também os rebaixa ao aproximá-los de um porteiro de audiência, figura pouco respeitada no precário e injusto sistema judicial de Salvador.

Chama a atenção neste verso o uso de “porque” com valor final (para que) e a flexão no singular do verbo “ver”. Ao escrever “se veja”, e não “se vejam”, o poeta dá a entender que “pecado” e “pecador” compõem uma única entidade. Ver a si mesmo é se deparar com a própria consciência, o que em tese ocorre por efeito da conversão.

“Someto”, com o prefixo “so”, é uma variante de “submeto”. Gregório manifesta a disposição de acatar o julgamento da Igreja caso tenha se enganado ou sido maledicente na avaliação que faz dos pregadores. O poema se fecha com o mesmo julgamento positivo feito no início acerca dos símbolos e valores do cristianismo; quem os desmoraliza são os seus representantes.

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