Gregório de Matos traduz como poucos as contradições
do homem barroco. Seus poemas associam o lirismo amoroso e a contrição religiosa
à sátira irreverente, que por vezes descamba para a pornografia. Neles se
expressa a dualidade corpo/alma típica da escola literária à qual o poeta se
filiou.
Gregório foi sobretudo um crítico de costumes. Sua
disposição em denunciar desmandos administrativos
e mazelas de caráter foi facilitada pela natureza da sociedade em que viveu,
marcada pelo desregramento moral. Na Bahia do século 17, eram enormes as
contradições de uma sociedade que pregava a renúncia aos bens materiais ao
mesmo tempo que deles se recheava.
O poeta investia sobretudo contra os portugueses que exploravam
a Colônia, subtraindo-lhe o açúcar e o pau-brasil, mas não poupava também os
nativos; criticava o servilismo dos mulatos diante dos nobres, a usura dos
comerciantes e o licenciosidade sexual das mulheres.
No Barroco há duas grandes correntes: a cultista, marcada
pelos jogos formais; e a conceptista, caracterizada pela sutileza dos
conceitos. Costuma-se vincular Gregório de Matos à primeira, embora nem sempre
seja fácil distinguir em seus versos uma vertente da outra. Por vezes as duas
tendências se fundem, como no famoso soneto dedicado a um braço perdido, do
Menino Jesus, que foi desacatado por infiéis na Bahia. A sequência de imagens
que articulam parte e todo evolui, dialeticamente, a partir do conceito segundo
o qual “o todo sem a parte não é todo”.
A polarização entre o divino e o mundano transparece na
crítica que o poeta faz a representantes da Igreja. Seus alvos preferidos são
os religiosos que não honram o voto que fizeram e, com isso, concorrem para
trazer descrédito à religião. A postura moralista e até piedosa que assume
nesse tipo de composições confirma a dualidade em que se debate o seu espírito.
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COMENTÁRIOS
As duas primeiras estrofes reconhecem a religião como
uma forma deaprimoramento individual e harmonia entre os homens. Contestam, no
entanto, a atitude dos missionários que, na cerimônia da Via Sacra, se excedem
no empenho com o qual buscam converter as pessoas.
Com “ir ao Céu”, o poeta ironiza os fiéis que participam da Via Sacra sem espírito cristão, ou seja, motivados apenas pela propaganda dos missionários. Tal propaganda, em vez de despertar a autêntica virtude, induz à hipocrisia.
O uso da antítese e das conjunções adversativas realça o contraste entre as virtudes cristãs e a atitude dos missionários. Esse tipo de oposição fundamenta o argumento ad personam, muito usado também pelo Padre Antônio Vieira para criticar os religiosos que pregam uma coisa e fazem outra.
O poeta compara os missionários que transformam as pregações em pregões aos vendedores que anunciam seus produtos. Posteriormente, também os rebaixa ao aproximá-los de um porteiro de audiência, figura pouco respeitada no precário e injusto sistema judicial de Salvador.
Chama a atenção neste verso o uso de “porque” com valor final (para que) e a flexão no singular do verbo “ver”. Ao escrever “se veja”, e não “se vejam”, o poeta dá a entender que “pecado” e “pecador” compõem uma única entidade. Ver a si mesmo é se deparar com a própria consciência, o que em tese ocorre por efeito da conversão.
“Someto”, com o prefixo “so”, é uma variante de “submeto”. Gregório manifesta a disposição de acatar o julgamento da Igreja caso tenha se enganado ou sido maledicente na avaliação que faz dos pregadores. O poema se fecha com o mesmo julgamento positivo feito no início acerca dos símbolos e valores do cristianismo; quem os desmoraliza são os seus representantes.
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