“Paulinho”,
como era conhecido, tinha a fama de ser o mais erudito do grupo. Dominava os clássicos
portugueses e estrangeiros, sobre os quais escreveu comentários agudos e esclarecedores.
Muitos dos seus textos são excelentes instrumentos de iniciação na grande
literatura -- de Homero a James Joyce, passando por Rimbaud e Lewis Carroll. Perfeccionista,
chegou a estudar russo para ler Maiakovski no original. A versatilidade com que trabalhava
a palavra escrita levou-o a exercitar gêneros tão diversos como a poesia e o
humor (Luis Fernando Veríssimo confessa que o leu muito). Avesso ao retoricismo,
explorou as possibilidades da palavra em versos, axiomas e jogos verbais. Nestes
últimos, cultivou o nonsense como uma forma de refletir sobre a complexidade da
natureza humana.
O desejo de sentir “o
peso e a nitidez das palavras” o levou a experimentar LSD. Num dos textos em
que relata essa experiência, afirma ter tido acesso ao “milagre da voz”, que
brotava do “jorro caótico do inconsciente”. Sua literatura foi sobretudo a
tentativa de obter um acesso lúcido a tal
milagre. Ou seja: de entender e organizar esse caos, que é o mais fiel
espelho da alma humana.
TEXTO
Para Maria da Graça
Agora,
que chegaste à idade
avançada de 15 anos,
Maria da Graça, eu
te dou este
livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro
é doido, Maria. Isto
é: o sentido dele está em ti. (...)
Os homens
vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios,
nos negócios,
na política, nacional
e internacional, nos
clubes, nos
bares, nas artes,
na literatura, até
amigos, até
irmãos, até
marido e mulher,
até namorados,
todos vivem apostando corrida.
(...) É bobice,
Maria da Graça, disputar
uma corrida se a gente
não irá saber
quem venceu. Se
tiveres de ir a algum
lugar, não
te preocupe a vaidade
fatigante de ser a primeira
a chegar. Se chegares
sempre aonde
quiseres, ganhaste (...).
Os milagres
sempre acontecem na vida
de cada um
e na vida de todos.
Mas, ao contrário
do que se pensa,
os melhores e mais
fundos milagres
não acontecem de repente,
mas devagar,
muito devagar.
Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais
tarde, prepara-te para
a visita do monstro,
e não te
desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar
diminuindo de novo”. Em
algum lugar
há cogumelos que
nos fazem crescer
novamente.
E escuta
esta parábola perfeita:
Alice tinha
diminuído tanto de tamanho
que tomou um
camundongo por
um hipopótamo.
Isso acontece muito,
Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também
acontece. E é um escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que
expulsamos ontem passou a ser
hoje um
terrível rinoceronte.
(...) O jeito é rir
no caso da primeira
confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que
entrou em nossos
domínios disfarçado de camundongo.
Toda pessoa deve ter três caixas para guardar o humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor
que a gente
precisa ter
quando está sozinho,
para perdoares
a ti mesma, para
rires de ti mesma;
por fim,
uma caixinha
preciosa, muito
escondida, para as grandes
ocasiões. Chamo de grandes ocasiões
os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos
a tentação de achar que fracassamos ou
triunfamos, em que
nos sentimos umas drogas
ou muito
bacanas. Cuidado,
Maria, com as grandes
ocasiões.
Por
fim, mais
uma palavra de bolso:
às vezes uma pessoa
se abandona de tal
forma ao sofrimento, com
uma tal complacência,
que tem medo
de não poder sair de lá. A dor tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado.
Por isso
Alice, depois de ter
chorado um lago,
pensava: “Agora serei castigada,
afogando-me em minhas
próprias lágrimas”.
Conclusão:
a própria dor
deve ter sua
medida. É feio,
é imodesto, é vão,
é perigoso ultrapassar
a fronteira de nossa
dor, Maria da Graça.
COMENTÁRIOS
A crônica se estrutura como uma carta
em que o autor interpreta alguns trechos de “Alice no país das maravilhas”. Acompanha
um volume do livro de Lewis Carroll, que
é oferecido à garota como presente numa ocasião socialmente muito valorizada --
aquela em que a menina, passando a moça, debuta na sociedade. A natureza
imaterial desse presente chama a atenção para um rito de passagem bem mais
importante, que leva ao amadurecimento interior.
Ao
contrário dos manuais de autoajuda, que procuram ensinar a verdade sonegando ou
reduzindo a complexidade do real, o
autor propõe a Maria da Graça um enigma. A advertência para que ela procure o
sentido da obra “em si mesma” é um estímulo a que desconfie das fórmulas enganosas
que vão querer lhe passar. É também uma primeira e fundamental lição sobre a
leitura; lemos para desvenvendar os mistérios que existem dentro de nós.
O alerta agora
é para que a menina resista aos apelos da competição, tão frequentes no mundo moderno.
O gosto pela disputa, o desejo da vitória a qualquer preço, a obsessão de deixar
para trás os concorrentes levam a que o indivíduo se alheie de si mesmo.
Entre os perigos que rondam o
adolescente, está a depressão. Como ela pode se estender além do esperado,
deve-se prevenir contra um dos seus mais traiçoeiros efeitos, que é
superdimensionar as dificuldades. A troca de camundongo por hipopótamo
constitui uma representação alegórica desse engano, que tende a paralisar o
deprimido e pôr em risco a sua vida.
Conhecer a si mesmo, como lembra
Sócrates, demanda uma operação dialética do pensamento. Após prevenir Maria das
Graças sobre o perigo de superestimar os problemas, o autor alerta-a sobre o risco
oposto: o de subestimá-los. Com isso, encoraja-a a desconfiar das aparências e
avaliar com realismo as situações.
As chamadas “grandes ocasiões”,
conforme indicam as antíteses contidas neste parágrafo, são os momentos em que
tendemos a sucumbir aos extremos. Elas são marcadas não apenas pelo que nos
deprime, como também pelo que nos exalta (a exaltação, como se sabe, constitui o
reverso maníaco, ou eufórico, do processo depressivo). Contra essas armadilhas
deve incidir nosso humor mais precioso e recôndito.
Segundo o ditado, o feitiço às vezes se
volta contra o feiticeiro. Na versão
paródica apresentada no texto, enfatiza-se mais a punição da vítima do que a de
seu possível algoz, e com isso alerta-se para o perigo de se deixar seduzir
pelo sofrimento.
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