sábado, 25 de julho de 2020

Dyonélio Machado, a poesia que denuncia

          Para Dyonélio Machado, a poesia é essencial “mesmo na prosa mais prosaica”. Essa importância que ele dá ao poético explica algumas características da sua obra mais famosa, “Os ratos”, publicada em 1935. Trata-se de um romance social, que sequencia a vertente inaugurada por José Américo de Almeida, em 1928, com “A bagaceira”. 

         “Os ratos” relata um dia do personagem Naziazeno em sua luta para conseguir pagar a dívida com o leiteiro. Na tentativa de obter a quantia com que fará isso, apela a amigos e se envolve com agiotas, trambiqueiros e toda uma gama de indivíduos inescrupulosos que sobrevivem na cidade devorando-se uns aos outros. A delimitação da trama em “um dia” sugere que dificuldades semelhantes tenderão a se repetir.

           Os recursos da linguagem poética ajudam o narrador a visualizar “por dentro” o personagem e compor fragmentariamente a narrativa. Destacam-se entre eles as inversões, as repetições, o uso de reticências e pontos de exclamação ou interrogação, enfim, todo um conjunto de procedimentos que quebram a linearidade do discurso, instauram o tempo psicológico e ressaltam as marcas afetivas e emocionais. A experiência do autor como psiquiatra também influi na maneira como descreve as obsessões de Naziazeno.

            O clímax da história ocorre nas páginas finais; de posse do dinheiro, obtido por empréstimo, o personagem não consegue dormir devido ao receio de que o roubem. Cada vez mais angustiado, mantém-se em dolorosa alternância entre sono e vigília. Os ratos, que viriam levar-lhe a quantia arduamente obtida, figuram a rapacidade de uma ordem social que estimula a cupidez e constitui permanente ameaça aos socialmente desfavorecidos.   

 

                         TEXTO

                         Os ratos


        Que horas são? Com certeza é tarde. Não tem ouvido o relógio... Se vai prestar muita atenção, acompanhá-lo, vai se espertar ainda mais.

Quantas horas já está aí, nessa cama, enquanto os outros dormem... dormem...? Talvez umas cinco. Cinco horas?! Figura-se esse mesmo espaço de tempo de dia, cinco horas dum dia, dum dia de trabalho, de atividade! Das duas às sete da tarde. Estará mesmo todo esse tempo – das duas às sete – deitado, virando-se... virando-se? (...)

         Um rufar -- um pequeno rufar -- por sobre a esfera do chiado, no forro... Ratos... são ratos! Naziazeno quer distinguir bem. Atenção. O pequeno rufar – um dedilhar leve – perde-se para um dos cantos do forro...

         Ele se põe a escutar agudamente. Um esforço para afastar aquele conjunto amorfo de ruidozinhos, aquele chiado... Lá está, num canto, no chão, o guinchinho, feito de várias notinhas geminadas, fininhas...

São os ratos!... Vai escutar com atenção, a respiração meio parada. Hão de ser muitos: há várias fontes daquele guinchinho, e de quando, no forro, em vários pontos, o rufar...      

A casa está cheia de ratos...

Espera ouvir um barulho de ratos nas panelas, nos pratos, lá na cozinha.

O chiado desapareceu. Agora, é um silêncio e os ratos... (...)  Os ratos vão roer -- já roeram! -- todo o dinheiro!...  (“Os ratos”, Ática, p. 135-138.)

                                          

                     COMENTÁRIOS

 

A incerteza sobre a hora angustia Naziazeno; ele oscila entre a atenção ao relógio e a entrega a suas fantasias. O contraste entre o tempo cronológico e o tempo psicológico ressalta a angústia do personagem, que busca apreender a “duração” da insônia comparando-a com as horas que destina ao trabalho.  A tentativa de pautar por essa escala objetiva os momentos de vigília e inquietação aumenta seu desconforto.

 

O discurso indireto livre, as repetições de palavras e os fragmentos de frase tendem a romper a continuidade discursiva e conferir verossimilhança às obsessões do personagem. São uma forma de representar, ao mesmo tempo, a dúvida quanto ao que de fato ocorre na casa e a ideia fixa de que os ratos virão lhe tirar o dinheiro.

Os ratos aparecem numa gradação que vai do chiado ao rufar (atente-se para a conotação marcial deste substantivo). O que o personagem adivinha, pois não pode ver, evidencia-se pelos sons que se multiplicam. O elemento acústico prevalece sobre o visual e manifesta-se em tons variados, fruto da atenção concentrada e delirante de Naziazeno.

 

O uso do dêitico favorece a representação metonímica dos ratos, que aparecem como “um guinchinho”. O que lá está, em vez dos animais, é o som que produzem. Note-se que a cadeia de diminutivos, em vez de abrandar, reforça o incômodo provocado pelos roedores.

 

A paragrafação do texto não segue um princípio lógico; é determinada pela alternância das ideias de Naziazeno e pelo peso de determinadas revelações – como a de que os ratos “enchem a casa”. Nessa imagem hiperbólica, de caráter impressionista, o elemento visual sobrepõe-se ao acústico.   

 

A retificação do tempo verbal (da locução no futuro para o pretérito perfeito) sugere um desdobramento da personalidade de Naziazeno, em quem parecem conviver duas vozes. A expectativa convive com a certeza -- uma certeza obviamente ilusória, ditada mais pelo temor de perder o dinheiro do que pela evidência dos fatos.

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