Para
Dyonélio Machado, a poesia é essencial “mesmo na prosa mais prosaica”. Essa importância
que ele dá ao poético explica algumas características da sua obra mais famosa, “Os
ratos”, publicada em 1935. Trata-se de um romance social, que sequencia a vertente
inaugurada por José Américo de Almeida, em 1928, com “A bagaceira”.
“Os
ratos” relata um dia do personagem Naziazeno em sua luta para conseguir pagar a
dívida com o leiteiro. Na tentativa de obter a quantia com que fará isso, apela
a amigos e se envolve com agiotas, trambiqueiros e toda uma gama de indivíduos
inescrupulosos que sobrevivem na cidade devorando-se uns aos outros. A
delimitação da trama em “um dia” sugere que dificuldades semelhantes tenderão a
se repetir.
Os recursos da linguagem poética
ajudam o narrador a visualizar “por dentro” o personagem e compor
fragmentariamente a narrativa. Destacam-se entre eles as inversões, as
repetições, o uso de reticências e pontos de exclamação ou interrogação, enfim,
todo um conjunto de procedimentos que quebram a linearidade do discurso,
instauram o tempo psicológico e ressaltam as marcas afetivas e emocionais. A
experiência do autor como psiquiatra também influi na maneira como descreve as
obsessões de Naziazeno.
O clímax da história ocorre nas
páginas finais; de posse do dinheiro, obtido por empréstimo, o personagem não
consegue dormir devido ao receio de que o roubem. Cada vez mais angustiado, mantém-se
em dolorosa alternância entre sono e vigília. Os ratos, que viriam levar-lhe a
quantia arduamente obtida, figuram a rapacidade de uma ordem social que
estimula a cupidez e constitui permanente ameaça aos socialmente desfavorecidos.
TEXTO
Os ratos
Que horas são? Com certeza é tarde. Não tem ouvido o relógio... Se vai prestar muita atenção, acompanhá-lo, vai se espertar ainda mais.
Quantas horas já está aí,
nessa cama, enquanto os outros dormem... dormem...? Talvez umas cinco. Cinco
horas?! Figura-se
esse mesmo espaço de tempo de dia,
cinco horas dum dia, dum dia de
trabalho, de atividade! Das duas às sete da tarde. Estará mesmo todo esse tempo
– das duas às sete – deitado, virando-se... virando-se? (...)
Um rufar -- um pequeno rufar -- por sobre a esfera do chiado,
no forro... Ratos... são ratos! Naziazeno quer distinguir bem. Atenção.
O pequeno rufar – um dedilhar leve – perde-se
para um dos cantos do forro...
Ele
se põe a escutar agudamente. Um esforço para afastar aquele conjunto amorfo de
ruidozinhos, aquele chiado... Lá está, num canto,
no chão, o guinchinho, feito de várias notinhas geminadas, fininhas...
São os ratos!... Vai escutar com
atenção, a respiração meio parada. Hão de ser muitos: há várias fontes daquele
guinchinho, e de quando, no forro, em vários pontos, o rufar...
A casa está cheia de
ratos...
Espera ouvir um barulho de ratos nas
panelas, nos pratos, lá na cozinha.
O chiado desapareceu. Agora, é um
silêncio e os ratos... (...) Os ratos
vão roer -- já roeram! -- todo o dinheiro!...
(“Os ratos”, Ática, p. 135-138.)
COMENTÁRIOS
A incerteza sobre a hora angustia Naziazeno; ele oscila entre a
atenção ao relógio e a entrega a suas fantasias. O contraste entre o tempo cronológico
e o tempo psicológico ressalta a angústia do personagem, que busca apreender a “duração”
da insônia comparando-a com as horas que destina ao trabalho. A tentativa de pautar
por essa escala
objetiva os momentos de vigília e inquietação aumenta seu desconforto.
O discurso indireto livre, as repetições de palavras e os fragmentos
de frase tendem a romper a continuidade discursiva e conferir verossimilhança
às obsessões do personagem. São uma forma de representar, ao mesmo tempo, a dúvida
quanto ao que de fato ocorre na casa e a ideia fixa de que os ratos virão lhe tirar
o dinheiro.
Os ratos aparecem numa gradação que vai do chiado ao rufar
(atente-se para a conotação marcial deste substantivo). O que o personagem
adivinha, pois não pode ver, evidencia-se pelos sons que se multiplicam. O
elemento acústico prevalece sobre o visual e manifesta-se em tons variados,
fruto da atenção concentrada e delirante de Naziazeno.
O uso do dêitico favorece a representação metonímica dos ratos,
que aparecem como “um guinchinho”. O que lá está, em vez dos animais, é o som
que produzem. Note-se que a cadeia de diminutivos, em vez de abrandar, reforça
o incômodo provocado pelos roedores.
A paragrafação do texto não segue um princípio lógico; é
determinada pela alternância das ideias de Naziazeno e pelo peso de
determinadas revelações – como a de que os ratos “enchem a casa”. Nessa imagem
hiperbólica, de caráter impressionista, o elemento visual sobrepõe-se ao
acústico.
A retificação do tempo verbal (da locução no futuro para o pretérito perfeito) sugere um desdobramento da personalidade de Naziazeno, em quem parecem conviver duas vozes. A expectativa convive com a certeza -- uma certeza obviamente ilusória, ditada mais pelo temor de perder o dinheiro do que pela evidência dos fatos.
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