Aluísio (Tancredo Belo Gonçalves) de
Azevedo é o mais importante representante do Naturalismo em nossa literatura. Seu
romance “O mulato”, publicado em 1881, inaugurou entre nós esse estilo de época,
marcado pela influência dos postulados científicos. A crença nas verdades da
ciência levou a que modelos derivados da química e da biologia fossem transplantados
para o estudo do comportamento humano.
Pela ótica naturalista, a vida aparece como
o produto de uma força cega, que “germina” da natureza e evolui segundo condicionamentos
físicos e ambientais; o meio, a herança e o momento determinam as escolhas
humanas. O determinismo apresenta o homem como privado de livre-arbítrio, ou
seja, limitado em suas ações, percepções e sentimentos por estímulos alheios à
sua vontade. Entre eles, o mais forte é sem dúvida o sexo.
O
romancista maranhense gosta de apresentar seus personagens em ambientes coletivos,
nos quais a sexualidade se dissemina animalescamente. Por mais que o indivíduo
resista (é o caso da mãe de Pombinha, que tenta em vão preservar a virgindade
da filha para diferenciá-la das outras meninas do cortiço), a força do ambiente
acaba reduzindo-o a mais um componente da massa. Limitados ao que há neles de
instintivo, os personagens aparecem como componentes de uma engrenagem regida
por leis mecânicas e impessoais.
Nos
romances de Aluísio de Azevedo, o cientificismo se conjuga à preocupação
social. Inspirado pelos ideais
republicanos, ele critica a Igreja e a monarquia, ao mesmo tempo que protesta contra a escravidão (ilustrada
pungentemente, em “O cortiço”, na figura de Bertoleza). Investe também contra o
capitalismo, que estimula em indivíduos como João Romão a febre do lucro.
Percebe-se ainda em sua obra o confronto entre os valores europeus e a mentalidade
dos nativos, deformada pelos vícios da colonização. Contaminados por essa danosa
influência, os portugueses acabavam “toldando-se nos vapores da cachaça e
chafurdando-se na mulataria nacional”.
TEXTO
O cortiço
O cortiço
João Romão, em
chinelas e camisola, passeava de um para outro lado no seu quarto novo. (...)
Parecia muito preocupado; pensava em
Bertoleza que, a essas horas, dormia lá embaixo num vão de escada, aos fundos
do armazém, perto da comuna.
Mas
que diabo havia ele de fazer afinal daquela peste?
E coçava a
cabeça, impaciente por descobrir um meio de ver‑se livre dela.
É que nessa
noite o Miranda lhe falara abertamente sobre o que ouvira de Botelho, e estava
tudo decidido: Zulmira aceitava‑o para marido e Dona Estela ia marcar o dia do
casamento.
O
diabo era a Bertoleza!...
(...) Ora, que
raio de dificuldade armara ele próprio para se coser!... Como poderia
agora mandá‑la passear assim, de um momento
para outro, se o demônio da crioula o acompanhava já havia tanto tempo e toda a
gente na estalagem sabia disso?
Mas, só com lembrar‑se da sua união com aquela brasileirinha
fina e aristocrática, um largo quadro de vitórias rasgava‑se defronte da desensofrida
avidez da sua vaidade. Em primeiro lugar fazia‑se membro de uma família
tradicionalmente orgulhosa, como era, dito por todos, a de Dona Estela; em
segundo lugar aumentava consideravelmente os seus bens com o dote da noiva, que
era rica e, em terceiro, afinal, caber‑lhe‑ia mais tarde tudo o que o Miranda
possuía, realizando‑se deste modo um velho sonho que o vendeiro afagava desde o
nascimento da sua rivalidade com o vizinho.
E via‑se já na
brilhante posição que o esperava: uma vez de dentro, associava‑se logo com o
sogro e iria pouco a pouco, como quem não quer a coisa, o empurrando para o
lado, até empolgar‑lhe o lugar e fazer de si um
verdadeiro chefe da colônia portuguesa no Brasil; depois, quando o barco
estivesse navegando ao largo a todo o pano — tome
lá alguns pares de contos de réis e passe‑me para cá o titulo de Visconde! (...)
Ah! ele, posto
nunca o dissera a ninguém, sustentava de si para si nos últimos anos o firme
propósito de fazer‑se um titular mais graduado que o Miranda. E, só depois de
ter o titulo nas unhas, é que iria à Europa, de passeio, sustentando grandeza,
metendo invejas, cercado de adulações, liberal,
pródigo, brasileiro, atordoando o mundo velho com o seu ouro novo
americano!
E a Bertoleza? gritava‑lhe do interior uma
voz impertinente.
COMENTÁRIOS
Aluísio
de Azevedo tende a construir personagens típicos, que representam uma classe,
uma profissão, uma atividade artística. João Romão é o burguês obcecado pelo
dinheiro e a ascensão social. Numa figura assim, não há brecha para dramas de
consciência. O que o faz perder o sono não é nenhum escrúpulo de ordem moral,
mas o julgamento de que seria alvo caso abandonasse a negra que outrora o
ajudou a enriquecer e hoje constitui um obstáculo aos seus planos.
O uso discurso indireto livre é um dos
meios de expressar o monólogo interior indireto, em que a voz do personagem se
alterna com o discurso do narrador. Em João Romão, essa voz é marcada por uma oralidade recheada de
clichês e expressões depreciativas, o que indica a estreiteza do seu universo
mental.
No estilo de Aluísio de Azevedo, o
registro oral se alterna com marcas da língua culta. O uso enclítico da forma oblíqua átona, por
exemplo, é uma das formas de opor o discurso do narrador ao dos personagens.
A rivalidade entre Romão e Miranda é política,
mas sobretudo econômica. A associação do casamento ao projeto de desbancar o
futuro sogro reflete o pragmatismo do vendeiro, que age calculadamente em tudo
que faz. Esse espírito de cálculo, que se sobrepõe aos vínculos emocionais e
familiares, é uma das marcas do capitalismo que o personagem representa.
O casamento com a filha do comerciante
Miranda e da aristocrática Estela era o primeiro passo para Romão adquirir
nobreza. “Adquirir” é bem o termo, pois o que não lhe coube por herança viria pelo
dinheiro. O autor critica nos brasileiros e nos imigrantes portugueses esse
fascínio pela tradição. Vê isso com ironia, conforme se percebe na referência a
Zulmira como uma “brasileirinha fina” -- expressão que destaca a doentia
fragilidade da moça.
Na sequência ascendente dos
adjetivos, “brasileiro” aparece como um resumo das qualidades do povo, cujo
caráter é marcado pela liberalidade, o espírito de gastança, o desejo de
ostentação. Uma das mais típicas manifestações dessa vaidade, índice de sucesso
econômico e social, era o hábito de viajar à Europa.
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