domingo, 19 de julho de 2020

José Américo de Almeida, algo de novo sob o sol



        José Américo de Almeida (10/01/1887-10/03/1980) tem importância histórica para a nossa literatura. Com “A bagaceira”, inaugurou o moderno regionalismo brasileiro. Quando o romance apareceu, em 1928, foi saudado pelo crítico Alceu Amoroso Lima como algo de realmente novo. Novo porque alargava as conquistas de 1922, acrescentando à liberdade linguística e ao antiacademicismo a representação dos conflitos sociais. Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado seguiriam a trilha aberta pelo paraibano.  
         Conhecedor profundo do Nordeste, onde iniciou destacada carreira política, José Américo revela nessa obra os contrastes de um sistema perpetuador de exclusão e miséria. De um lado está o senhor de engenho, dono da terra e de tudo que nela se encontra (inclusive as pessoas); do outro estão os trabalhadores do eito, condenados a uma rotina indigna a fim de enriquecer os patrões.
    Segundo Rachel de Queiroz, “A bagaceira” é o romance que Euclides da Cunha teria escrito. A aproximação se justifica tanto pela temática, quanto pelo estilo. Pelo tema porque o romance ilustra, no plano ficcional, algumas das marcas fisiográficas e humanas da região estudada pelo autor de “Os Sertões”. E pelo estilo porque há na linguagem de ambos o gosto pelo vocabulário erudito, pela plasticidade das imagens e pelo tom sentencioso.
     Em José Américo, o tom sentencioso às vezes prejudica a naturalidade da narrativa, pois representa uma excessiva intromissão do autor. Esse traço é no entanto superado pela exuberância do estilo e a densidade das personagens. A conjugação das pressões sociais com as peculiaridades de crenças e valores faz com que tenham uma experiência trágica da vida. Nesse contexto extremo, marcado inclusive pela rivalidade entre indivíduos de uma mesma classe, não é o sol o maior inimigo.

                            TEXTO
                                             
                         A bagaceira

      Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos – esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres.
     Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e trêmulos, num passo arrastado de quem leva as pernas, em vez de ser levado por elas.
     Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam. Expulsos de seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.
     Fugiam do sol e o sol guiava-os nesse forçado nomadismo. (...)
    Vinham escoteiros. Menos os hidrópicos – doentes da alimentação tóxica – com os fardos das barrigas alarmantes. 
      Lúcio almoçava com o sentido nos retirantes. Escondia côdeas de pão para distribuir com eles, como quem lança migalhas a aves de arribação.
     A cabroeira escarinha metia-os à bulha:
     -- Vem tirar a barriga da miséria...
     Párias da bagaceira, vítimas de uma emperrada organização do trabalho e de uma dependência que os desumanizava, eram os mais insensíveis ao martírio das retiradas.
    A colisão dos meios pronunciava-se no contato das migrações periódicas. Os sertanejos eram malvistos nos brejos. E o nome de brejeiro, cruelmente pejorativo. (...)
      Dagoberto olhava por olhar, indiferente a essa tragédia viva.
       A seca representava a valorização da safra. Os senhores de engenho, de uma avidez vã, refaziam-se da depreciação dos tempos normais à custa da desgraça periódica.


                     COMENTÁRIOS

O efeito dos paradoxos é destacar a onipresença da morte sob o império cíclico da seca. Em tal cenário o que se renova não é a vida, mas a destruição.

O visualismo é uma das marcas do estilo do autor, que tem na representação física dos retirantes um instrumento de crítica social. Com isso, ele intensifica a denúncia da miséria, que imprime nos corpos a sua marca. A imagem, de cunho impressionista, é sublinhada pelo recurso expressionista da aliteração.  

A alusão bíblica se reforça pela referência ao fogo, que metonimicamente conduz a “sol” e daí a “seca”. A cena, evocando o castigo infligido ao primeiro homem, remete ao imaginário religioso. Nessa passagem, o narrador sintoniza com a fantasia popular; posteriormente demonstrará empatia com as ideias progressistas de Lúcio, que vê injustiça social onde o povo vê castigo.  

A condição de virem escoteiros (sem bagagem) é própria da penúria dos retirantes. Quem escapa a essa condição o faz, ironicamente, carregando as barrigas dilatadas pela hidropisia. Essa imagem visual, juntamente com a referência aos corpos que dançam, destaca o peso da caminhada.

A atitude de Lúcio (sutilmente comparado a São Francisco) contrasta com a do pai, Dagoberto, que se mantém insensível ao êxodo dos retirantes. A rivalidade entre o senhor de engenho e o filho permeia todo o romance e simboliza o choque entre a ordem tradicional e os anseios de mudança. O conflito entre os dois se intensificará com a disputa pelo amor da retirante Soledade.

A seca põe lado a lado brejeiros e sertanejos. Envolvidos na brutal rotina da bagaceira, os brejeiros não percebem que são tão vítimas quanto os que emigram do sertão em busca de uma vida melhor. Essa inconsciência alimenta rivalidades absurdas, que impedem a percepção do verdadeiro inimigo.

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