Lêdo Ivo nasceu
a 18 de fevereiro de 1924, em Maceió (AL) e faleceu em 23 de dezembro de 2012 em
Sevilha (Espanha). Estreou em 1944, com Imaginações; além de escrever poemas, crônicas, contos e romances,
dedicou-se ao jornalismo e à tradução. Ocupou a Cadeira
nº 10 da Academia Brasileira de Letras,
O poeta pertence à terceira geração do
Modernismo. Sua obra mostra o equilíbrio entre as inovações formais da primeira
geração e o engajamento da segunda. Há
nela, conforme assinala o crítico Tristão de Athayde, o propósito de revalorizar
as palavras e criar novas imagens.
O
alagoano associa o novo ao tradicional, o que justifica a sua preferência pelo soneto.
Ele mescla esse tipo de composição a poemas longos, de metros variados, e à brevidade
do haicai. São poemas que têm em comum o rigor da linguagem. A preocupação com a
correção linguística levou-o certa vez a confessar que sentia “abalos sísmicos
em suas florestas interiores ao ouvir confrades pronunciarem impropriedades
como ‘de maneiras que’”.
A crítica costuma destacar em Ledo Ivo
o compromisso com a subjetividade e a exploração do passado. O sentimento de
ser único, só, e de se confrontar com o mundo, é uma característica da sua voz
poética. Esse egocentrismo se alterna com o protesto contra as desigualdades
sociais. Percebe-se em muitos dos seus versos o silencioso clamor dos excluídos,
que perturba a consciência do autor tanto quanto as dúvidas sobre a existência
de Deus.
A desigualdade entre os homens, por
sinal, concorre para que o poeta duvide de que haja um Ser superior. “Não somos
dignos de piedade/ Melhor fora que Deus não existisse/ e vivêssemos todos fora
de Seu olhar incômodo” – escreve ele num dos poemas de “A noite misteriosa”. A impotência
em tornar melhor o homem não raro o faz optar pela ironia.
(Chico
Viana, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, é professor de português e assina
no site de “Língua” o blog “Na ponta do lápis” www.chicoviana.com)
TEXTO
Os Morcegos
Os
morcegos se escondem entre as cornijas
da alfândega. Mas onde se escondem os homens,
que contudo voam a vida
inteira no escuro,
chocando-se
contra as paredes brancas do
amor?
A casa de nosso pai era cheia de
morcegos
pendentes, como luminárias, dos velhos caibros
que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.
“Estes filhos chupam o nosso sangue”,
suspirava meu pai.
Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero
que, como ele, se nutre do sangue dos
outros bichos
(meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige
o suor do semelhante mesmo na escuridão?
No halo
de um seio jovem como a noite
esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz
do farol
o homem guarda as moedas
douradas de seu amor.
Mas o morcego, dormindo como um
pêndulo, só guarda
o dia ofendido.
Ao
morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito
irmãos)
a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.
Levantamos
a hipoteca e conservamos os morcegos.
E entre
as nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.
COMENTÁRIOS
A referência aos homens,
como um todo, ilustra um traço comum no poeta: a interdependência entre o pessoal
e o coletivo. Conforme se vê ao longo do texto, o que se aplica ao microcosmo
da família cabe também no macrocosmo das relações sociais.
A analogia entre homem e morcego se instaura mediante a
indicação da escureza comum a ambos. Só que no homem o escuro é de natureza
afetiva, espiritual; simboliza o egoísmo, a impossibilidade de amar. O branco anteparo
do amor constitui uma antítese ao voo de quem é cego à consideração do outro.
A
descrição da casa, onde à noite chovia pelo telhado, realça a precariedade do
espaço da família. O que o poeta rememora tem muito pouco de idealizado, e na
cena familiar o que prevalece é o ressentimento paterno. A lembrança dos morcegos,
com os quais os filhos se confundem, remete a uma visão desencantada da
infância, do homem, do mundo.
A alusão
bíblica antecipa o tom dessa estrofe; o homem não pode condenar um animal que
faz o mesmo que ele. A solidariedade humana falha não apenas no âmbito da
família; deixa de se cumprir também no domínio das relações sociais. Explorar o
trabalho do semelhante é uma forma de “tirar-lhe o sangue”.
O autor ironiza os que no discurso se referem ao outro
como irmão, porém na prática “se alimentam” dele. A ironia se prolonga no uso do adjetivo “comunitário”
(uma transposição de registro que lembra João Cabral de Melo Neto, companheiro
de geração do poeta). Na ótica dos gananciosos, o que torna os homens
semelhantes é a possibilidade de os explorar.
A quarta estrofe responde à indagação feita no segundo
verso do poema (sobre onde os homens se escondem). Esconder-se é guardar,
guardar-se, usurariamente reter sob o travesseiro (imagem de indiferença e
posse) a moeda de um amor que não se distribui aos outros. A ideia reitera o
motivo da escureza, que como vimos aproxima o homem do morcego.
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