quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Lêdo Ivo, lirismo e engajamento social

 

          Lêdo Ivo nasceu a 18 de fevereiro de 1924, em Maceió (AL) e faleceu em 23 de dezembro de 2012 em Sevilha (Espanha). Estreou em 1944, com Imaginações; além de escrever poemas, crônicas, contos e romances, dedicou-se ao jornalismo e à tradução. Ocupou a Cadeira nº 10 da Academia Brasileira de Letras,      

         O poeta pertence à terceira geração do Modernismo. Sua obra mostra o equilíbrio entre as inovações formais da primeira geração e o engajamento da segunda.  Há nela, conforme assinala o crítico Tristão de Athayde, o propósito de revalorizar as palavras e criar novas imagens.  

       O alagoano associa o novo ao tradicional, o que justifica a sua preferência pelo soneto. Ele mescla esse tipo de composição a poemas longos, de metros variados, e à brevidade do haicai. São poemas que têm em comum o rigor da linguagem. A preocupação com a correção linguística levou-o certa vez a confessar que sentia “abalos sísmicos em suas florestas interiores ao ouvir confrades pronunciarem impropriedades como ‘de maneiras que’”. 

         A crítica costuma destacar em Ledo Ivo o compromisso com a subjetividade e a exploração do passado. O sentimento de ser único, só, e de se confrontar com o mundo, é uma característica da sua voz poética. Esse egocentrismo se alterna com o protesto contra as desigualdades sociais. Percebe-se em muitos dos seus versos o silencioso clamor dos excluídos, que perturba a consciência do autor tanto quanto as dúvidas sobre a existência de Deus.

          A desigualdade entre os homens, por sinal, concorre para que o poeta duvide de que haja um Ser superior. “Não somos dignos de piedade/ Melhor fora que Deus não existisse/ e vivêssemos todos fora de Seu olhar incômodo” – escreve ele num dos poemas de “A noite misteriosa”. A impotência em tornar melhor o homem não raro o faz optar pela ironia.

(Chico Viana, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, é professor de português e assina no site de “Língua” o blog “Na ponta do lápis” www.chicoviana.com)

                  TEXTO

              Os Morcegos

Os morcegos se escondem entre as cornijas
da alfândega. Mas onde se escondem os homens,
que contudo voam a vida inteira no escuro,

chocando-se contra as paredes brancas do amor?

A casa de nosso pai era cheia de morcegos
pendentes, como luminárias, dos velhos caibros
que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.
Estes filhos chupam o nosso sangue”, suspirava meu pai.

Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero
 que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos
 (meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige
 o suor do semelhante mesmo na escuridão?

No halo de um seio jovem como a noite
esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz
do farol
o homem guarda as moedas douradas de seu amor.

Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda

 o dia ofendido.

 

Ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito

 irmãos)
a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.

Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.

E entre as nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.

 

                      COMENTÁRIOS

 

A referência aos homens, como um todo, ilustra um traço comum no poeta: a interdependência entre o pessoal e o coletivo. Conforme se vê ao longo do texto, o que se aplica ao microcosmo da família cabe também no macrocosmo das relações sociais.  

A analogia entre homem e morcego se instaura mediante a indicação da escureza comum a ambos. Só que no homem o escuro é de natureza afetiva, espiritual; simboliza o egoísmo, a impossibilidade de amar. O branco anteparo do amor constitui uma antítese ao voo de quem é cego à consideração do outro.    

A descrição da casa, onde à noite chovia pelo telhado, realça a precariedade do espaço da família. O que o poeta rememora tem muito pouco de idealizado, e na cena familiar o que prevalece é o ressentimento paterno. A lembrança dos morcegos, com os quais os filhos se confundem, remete a uma visão desencantada da infância, do homem, do mundo.

A alusão bíblica antecipa o tom dessa estrofe; o homem não pode condenar um animal que faz o mesmo que ele. A solidariedade humana falha não apenas no âmbito da família; deixa de se cumprir também no domínio das relações sociais. Explorar o trabalho do semelhante é uma forma de “tirar-lhe o sangue”.

O autor ironiza os que no discurso se referem ao outro como irmão, porém na prática “se alimentam” dele.  A ironia se prolonga no uso do adjetivo “comunitário” (uma transposição de registro que lembra João Cabral de Melo Neto, companheiro de geração do poeta). Na ótica dos gananciosos, o que torna os homens semelhantes é a possibilidade de os explorar.   

A quarta estrofe responde à indagação feita no segundo verso do poema (sobre onde os homens se escondem). Esconder-se é guardar, guardar-se, usurariamente reter sob o travesseiro (imagem de indiferença e posse) a moeda de um amor que não se distribui aos outros. A ideia reitera o motivo da escureza, que como vimos aproxima o homem do morcego.

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