terça-feira, 25 de agosto de 2020

Lygia Fagundes Telles, a vida é uma bolha ao vento

  

Lygia Fagundes Telles, nascida em São Paulo a 19 de abril de 1923, foi a quarta filha do casal Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário Silva Jardim de Moura. Seu gosto por contar histórias veio do tempo em que ouvia as narrativas contadas pelas empregadas e por outras crianças. Influenciada por esses relatos, que falavam de lobisomens e mulas sem cabeça, começou a criar seus próprios textos.  Muitos deles foram escritos nas últimas páginas dos cadernos escolares para serem contados depois na roda familiar.

         Em 1938, dois anos depois que seus pais se separaram, a escritora publicou o primeiro livro de contos, “Porão e Sobrado”. Trabalhou no Departamento Agrícola do estado de São Paulo a fim de custear os estudos e se formar em Educação Física, em 1941. Nesse ano iniciou o curso de Direito  e começou a participar de debates literários que a levaram a conhecer Mário e Oswald de Andrade. Seu primeiro romance, “Ciranda de Pedra”, foi escrito  na fazenda Santo Antônio, em Araras, onde se reuniramam alguns dos principais representantes do Modernismo.

Lygia tematiza a solidão familiar, as opões políticas, os desencontros da adolescência, a violência das relações sociais. Seus contos são recortes líricos ou pungentes em que a autora procura demonstrar a fragilidade das escolhas humanas – entre elas, a do amor. O amor é frágil (tem a estrutura de uma bolha de sabão); descobri-lo é se defrontar com o mais íntimo da natureza humana e se reconhecer dependente do outro.

         Para o poeta e crítico José Paulo Paes, um dos méritos da escritora foi “ter dado estofo convincentemente humano às suas personagens burguesas, salvando-as da estereotipia a que as costuma confinar a ficção ideologicamente engajada”. Ela conseguiu isso por se centrar nos dramas individuais, que se desenrolam para além dos condicionamentos de classe. Entre as fontes de tensão, está o exercício da liberdade. Ser livre é se comprometer radicalmente; o erro de determinados escolhas tem repercussões definitivas e, quando não é mais possível mudar o rumo das coisas, determina a diferença entre felicidade e infelicidade. É o que se vê, por exemplo, no doloroso apanhado que a protagonista do conto “Apenas um saxofone” faz da própria vida.

   

                          TEXTO      

              Apenas um saxofone

                     (fragmento)

 

           Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho também um diamante do tamanho de um ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de fivela, o iate – trocaria tudo, aneis e dedos, para poder ouvir um pouco que fosse a música do saxofone. Nem seria preciso vê-lo, juro que nem pediria tanto, eu me contentaria em saber que estava vivo, vivo em algum lugar, tocando seu saxofone.

Quero deixar bem claro que a única coisa que existe para mim é a juventude, tudo o mais é besteira, lantejoulas, vidrilho. Posso fazer mil plásticas e não resolve, no fundo é a mesma bosta, só existe a juventude. Ele era a minha juventude mas naquele tempo eu não sabia, na hora a gente nunca sabe nem pode mesmo saber, fica tudo natural como o dia que sucede à noite, como o sol, a lua, eu era jovem e não pensava nisso como não pensava em respirar. Alguém por acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa, eu respirava tão bem... (Apenas um saxofone, p. 65)

 

          COMENTÁRIOS

No conto, uma mulher rica e solitária faz uma espécie de acerto de contas com a vida. Ela se recrimina por ter abandonado um saxofonista, que foi seu grande amor, e se casado por interesse com outra pessoa. O desalento com que lembra essa perda é realçado pelo vocativo, pelas interrogações repetidas e pelas elipses do sujeito, que remetem à figura do músico.

 Nesse exemplo de intertextualidade, a fonte é a conhecida máxima “Vão-se os anéis e fiquem os dedos”. Ao alterar-lhe a forma, a narradora suprime o que a sentença comporta de resignação, ou seja, aceitação de um mal menor como alternativa a um mal maior. Para a solidão em que ela se encontra, parece não haver consolo. Vale ressaltar a ambiguidade semântica da palavra “anéis”, que se pode ler em sentido também literal.  

 O uso do monólogo interior direto concorre para revelar a agitação emocional da personagem. São marcas dessa estratégia discursiva o emprego da primeira pessoa e a pontuação em desacordo com a norma (quanto ao uso de vírgulas e pontos, por exemplo). A mulher fala a si própria mesmo quando se dirige a um suposto juiz a quem assevera a humildade das suas pretensões.

 O sentido de besteira (tolice) é amplificado metaforicamente em lantejoulas e vidrilho. Esse conjunto sugere uma vida insignificante e se opõe à ideia de juventude, que a personagem referiu um pouco antes e com a qual identificará o saxofonista.

 A plástica é um procedimento comum entre as pessoas a cuja classe a narradora pertence. A referência hiperbólica a esse tipo de intervenção cirúrgica não deixa de ser uma forma de ironia; a narradora critica os que a ele se submetem com o ingênuo propósito de resgatar a juventude perdida.

O uso de termos chulos e grosseiros (disfemismo) é uma marca de oralidade. Geralmente caracteriza as pessoas de pouca educação ou baixa classe social. Pode servir a diferentes propósitos estilísticos. Nessa passagem, rompe com o formalismo das aparências e realça a agressividade que a personagem dirige a si e à classe a que pertence.


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Lêdo Ivo, lirismo e engajamento social

 

          Lêdo Ivo nasceu a 18 de fevereiro de 1924, em Maceió (AL) e faleceu em 23 de dezembro de 2012 em Sevilha (Espanha). Estreou em 1944, com Imaginações; além de escrever poemas, crônicas, contos e romances, dedicou-se ao jornalismo e à tradução. Ocupou a Cadeira nº 10 da Academia Brasileira de Letras,      

         O poeta pertence à terceira geração do Modernismo. Sua obra mostra o equilíbrio entre as inovações formais da primeira geração e o engajamento da segunda.  Há nela, conforme assinala o crítico Tristão de Athayde, o propósito de revalorizar as palavras e criar novas imagens.  

       O alagoano associa o novo ao tradicional, o que justifica a sua preferência pelo soneto. Ele mescla esse tipo de composição a poemas longos, de metros variados, e à brevidade do haicai. São poemas que têm em comum o rigor da linguagem. A preocupação com a correção linguística levou-o certa vez a confessar que sentia “abalos sísmicos em suas florestas interiores ao ouvir confrades pronunciarem impropriedades como ‘de maneiras que’”. 

         A crítica costuma destacar em Ledo Ivo o compromisso com a subjetividade e a exploração do passado. O sentimento de ser único, só, e de se confrontar com o mundo, é uma característica da sua voz poética. Esse egocentrismo se alterna com o protesto contra as desigualdades sociais. Percebe-se em muitos dos seus versos o silencioso clamor dos excluídos, que perturba a consciência do autor tanto quanto as dúvidas sobre a existência de Deus.

          A desigualdade entre os homens, por sinal, concorre para que o poeta duvide de que haja um Ser superior. “Não somos dignos de piedade/ Melhor fora que Deus não existisse/ e vivêssemos todos fora de Seu olhar incômodo” – escreve ele num dos poemas de “A noite misteriosa”. A impotência em tornar melhor o homem não raro o faz optar pela ironia.

(Chico Viana, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, é professor de português e assina no site de “Língua” o blog “Na ponta do lápis” www.chicoviana.com)

                  TEXTO

              Os Morcegos

Os morcegos se escondem entre as cornijas
da alfândega. Mas onde se escondem os homens,
que contudo voam a vida inteira no escuro,

chocando-se contra as paredes brancas do amor?

A casa de nosso pai era cheia de morcegos
pendentes, como luminárias, dos velhos caibros
que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.
Estes filhos chupam o nosso sangue”, suspirava meu pai.

Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero
 que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos
 (meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige
 o suor do semelhante mesmo na escuridão?

No halo de um seio jovem como a noite
esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz
do farol
o homem guarda as moedas douradas de seu amor.

Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda

 o dia ofendido.

 

Ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito

 irmãos)
a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.

Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.

E entre as nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.

 

                      COMENTÁRIOS

 

A referência aos homens, como um todo, ilustra um traço comum no poeta: a interdependência entre o pessoal e o coletivo. Conforme se vê ao longo do texto, o que se aplica ao microcosmo da família cabe também no macrocosmo das relações sociais.  

A analogia entre homem e morcego se instaura mediante a indicação da escureza comum a ambos. Só que no homem o escuro é de natureza afetiva, espiritual; simboliza o egoísmo, a impossibilidade de amar. O branco anteparo do amor constitui uma antítese ao voo de quem é cego à consideração do outro.    

A descrição da casa, onde à noite chovia pelo telhado, realça a precariedade do espaço da família. O que o poeta rememora tem muito pouco de idealizado, e na cena familiar o que prevalece é o ressentimento paterno. A lembrança dos morcegos, com os quais os filhos se confundem, remete a uma visão desencantada da infância, do homem, do mundo.

A alusão bíblica antecipa o tom dessa estrofe; o homem não pode condenar um animal que faz o mesmo que ele. A solidariedade humana falha não apenas no âmbito da família; deixa de se cumprir também no domínio das relações sociais. Explorar o trabalho do semelhante é uma forma de “tirar-lhe o sangue”.

O autor ironiza os que no discurso se referem ao outro como irmão, porém na prática “se alimentam” dele.  A ironia se prolonga no uso do adjetivo “comunitário” (uma transposição de registro que lembra João Cabral de Melo Neto, companheiro de geração do poeta). Na ótica dos gananciosos, o que torna os homens semelhantes é a possibilidade de os explorar.   

A quarta estrofe responde à indagação feita no segundo verso do poema (sobre onde os homens se escondem). Esconder-se é guardar, guardar-se, usurariamente reter sob o travesseiro (imagem de indiferença e posse) a moeda de um amor que não se distribui aos outros. A ideia reitera o motivo da escureza, que como vimos aproxima o homem do morcego.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

João Cabral de Melo Neto, engenharia do texto e denúncia de problemas sociais

         João Cabral de Melo Neto (1920-1999) nasceu no Recife e passou a infância em engenhos de açúcar. De volta à capital pernambucana, em 1930, cursou o primário no Colégio Marista. Amante do futebol, chegou a ser campeão juvenil pelo Santa Cruz Futebol Clube, em 1935. Com 18 anos começou a frequentar o grupo literário que se reunia em torno do crítico Willy Lewin e do pintor Vicente do Rego Monteiro. Publicou seu primeiro livro, “Pedra do Sono”, em 1942. Em 1945 deu a público “O engenheiro”, em que se definem os principais traços da sua poesia.

João Cabral é o mais importante poeta da chamada geração de 45, que se vale das conquistas das gerações anteriores para produzir uma obra de grande maturidade formal. É próprio dos participantes desse grupo, segundo Péricles Eugênio da Silva Gomes, “o agudo sendo de medida, a expressão sem excessos ou derramamentos”. Isto os faz substituir o anseio de ruptura e a denúncia em tons naturalistas das desigualdades sociais, comuns às gerações anteriores, pela reflexão comedida e o cuidado com a arquitetura do verso. 

Em João Cabral, esse cuidado se traduz em poemas de extremo rigor compositivo, nos quais o componente emocional é temperado pela reflexão. Avesso ao sentimentalismo fácil e aos apelos do inconsciente, ele concebe o poema como uma resposta ao “desafio da página em branco”, que supõe uma escolha deliberada de palavras e imagens.

           A crítica aponta em Cabral um barroquismo que se expressa em dualidades como “dentro e fora”, “masculino e feminino”, “Nordeste e Andaluzia”, “caatinga e mangue”. A aproximação é válida desde que não se entenda esse barroquismo como excesso retórico. Ninguém mais avesso ao excesso do que esse “poeta do menos”, como o qualificou o crítico Antonio Carlos Secchin. Os dualismos são uma marca positiva da poesia do pernambucano; prova disso é a associação que nela existe entre o rigor formal e a dimensão participante, expressa na denúncia das desigualdades sociais do Nordeste.   

 

     TEXTO

     Menino de engenho

A cana cortada é uma foice.

Cortada num ângulo agudo,

ganha o gume afiado da foice

que a corta em foice, um dar-se mútuo.

 

Menino, o gume de uma cana

cortou-me ao quase cegar-me,

e uma cicatriz, que não guardo,

soube dentro de mim guardar-se.

   

A cicatriz não tenho mais;

o inoculado, tenho ainda;

nunca soube é se o inoculado

(então) é vírus ou vacina.

 

                    COMENTÁRIOS

O título estabelece uma relação intertextual com o romance de José Lins do Rego; o que o romancista conta em detalhes o poeta resume em imagens e símbolos. Ambos têm em comum a dolorosa lembrança de uma fase da vida que lhes causou funda impressão e não deixou saudades.

 Chama a atenção nessa estrofe o esmero na construção da imagem. A identificação entre cana e foice, referida no primeiro verso, é explicitada nos versos seguintes por meio da reiteração da palavra “foice”, da forma que a cana toma por ação do objeto cortante e da animização presente no quarto verso, que sugere um pertencimento recíproco entre o instrumento e a planta.  “Cana”, “foice” e “gume”, por sinal, estão entre as palavras mais usadas pelo poeta.  

 A aliteração em pares das consoantes velar (/g/) e labiodental (/f/) sugere a agudeza e o movimento repetido da lâmina, que gradativamente fere a cana e lhe imprime o formato de foice. 

Não se deve confundir esse termo com um vocativo. Trata-se de um aposto circunstancial; o eu lírico se refere ao tempo em que era menino. Semelhantemente, o vocábulo “então”, que inicia o último verso, não é conjunção conclusiva, mas advérbio de tempo. Refere-se ao momento em que houve o corte.

A liberdade poética pode levar a empregos inusitados dos termos morfológicos. Nessa passagem, a combinação entre preposição e artigo introduz a ideia de consequência: “cortou-me a ponto de quase cegar-me”.

A referência ao caráter interno da cicatriz deixa ambígua a natureza do corte, cujo efeito foi mais psicológico do que físico. Pode ter havido um episódio com um pedaço de cana que, objetivamente, feriu o menino. Mas também se pode entender o corte como uma representação da vivência no engenho, pela qual ele foi dolorosamente marcado.

Estes versos confirmam a ideia de que o corte não se prendeu a um evento concreto. Do ponto de vista físico, é inconcebível que um pedaço de cano produza algum tipo de inoculação. Esse ponto de vista é confirmado pelo tom de incerteza com que se encerra o poema. Por meio das metáforas do vírus e da vacina, o eu lírico confessa não saber se o que viveu no engenho o fragilizou ou o fez mais resistente.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Gregório de Matos, entre o céu e a terra

Gregório de Matos traduz como poucos as contradições do homem barroco. Seus poemas associam o lirismo amoroso e a contrição religiosa à sátira irreverente, que por vezes descamba para a pornografia. Neles se expressa a dualidade corpo/alma típica da escola literária à qual o poeta se filiou.

Gregório foi sobretudo um crítico de costumes. Sua disposição em denunciar  desmandos administrativos e mazelas de caráter foi facilitada pela natureza da sociedade em que viveu, marcada pelo desregramento moral. Na Bahia do século 17, eram enormes as contradições de uma sociedade que pregava a renúncia aos bens materiais ao mesmo tempo que deles se recheava.  

O poeta investia sobretudo contra os portugueses que exploravam a Colônia, subtraindo-lhe o açúcar e o pau-brasil, mas não poupava também os nativos; criticava o servilismo dos mulatos diante dos nobres, a usura dos comerciantes e o licenciosidade sexual das mulheres.  

No Barroco há duas grandes correntes: a cultista, marcada pelos jogos formais; e a conceptista, caracterizada pela sutileza dos conceitos. Costuma-se vincular Gregório de Matos à primeira, embora nem sempre seja fácil distinguir em seus versos uma vertente da outra. Por vezes as duas tendências se fundem, como no famoso soneto dedicado a um braço perdido, do Menino Jesus, que foi desacatado por infiéis na Bahia. A sequência de imagens que articulam parte e todo evolui, dialeticamente, a partir do conceito segundo o qual “o todo sem a parte não é todo”.

A polarização entre o divino e o mundano transparece na crítica que o poeta faz a representantes da Igreja. Seus alvos preferidos são os religiosos que não honram o voto que fizeram e, com isso, concorrem para trazer descrédito à religião. A postura moralista e até piedosa que assume nesse tipo de composições confirma a dualidade em que se debate o seu espírito.

 

                             TEXTO      

 

                   Soneto

(Aos missionários em ocasião que corriam a Via Sacra.)

Via de perfeição é a Sacra Via,

via do Céu, caminho da verdade,

mas ir ao Céu com tal publicidade,

mais que à virtude o boto à hipocrisia.

 

O ódio é da alma infame companhia,

a paz deixou-a Deus à cristandade;

mas arrastar por força u’a vontade,

em vez de caridade é tirania.

 

O dar pregões no púlpito é indecência:

Que de Fulano”? e “Venha aqui Sicrano

porque pecado e pecador se veja.

 

É próprio de um porteiro de audiência,

e se nisto mal digo, ou mal me engano,

eu me someto à Santa Madre Igreja.

 

                            COMENTÁRIOS           

 

As duas primeiras estrofes reconhecem a religião como uma forma deaprimoramento individual e harmonia entre os homens. Contestam, no entanto, a atitude dos missionários que, na cerimônia da Via Sacra, se excedem no empenho com o qual buscam converter as pessoas.

Com “ir ao Céu”, o poeta ironiza os fiéis que participam da Via Sacra     sem espírito cristão, ou seja, motivados apenas pela propaganda dos missionários. Tal propaganda, em vez de despertar a autêntica virtude, induz à hipocrisia.

O uso da antítese e das conjunções adversativas realça o contraste entre as virtudes cristãs e a atitude dos missionários. Esse tipo de oposição fundamenta o argumento ad personam, muito usado também pelo Padre Antônio Vieira para criticar os religiosos que pregam uma coisa e fazem outra.

O poeta compara os missionários que transformam as pregações em pregões aos vendedores que anunciam seus produtos. Posteriormente, também os rebaixa ao aproximá-los de um porteiro de audiência, figura pouco respeitada no precário e injusto sistema judicial de Salvador.

Chama a atenção neste verso o uso de “porque” com valor final (para que) e a flexão no singular do verbo “ver”. Ao escrever “se veja”, e não “se vejam”, o poeta dá a entender que “pecado” e “pecador” compõem uma única entidade. Ver a si mesmo é se deparar com a própria consciência, o que em tese ocorre por efeito da conversão.

“Someto”, com o prefixo “so”, é uma variante de “submeto”. Gregório manifesta a disposição de acatar o julgamento da Igreja caso tenha se enganado ou sido maledicente na avaliação que faz dos pregadores. O poema se fecha com o mesmo julgamento positivo feito no início acerca dos símbolos e valores do cristianismo; quem os desmoraliza são os seus representantes.

sábado, 25 de julho de 2020

Dyonélio Machado, a poesia que denuncia

          Para Dyonélio Machado, a poesia é essencial “mesmo na prosa mais prosaica”. Essa importância que ele dá ao poético explica algumas características da sua obra mais famosa, “Os ratos”, publicada em 1935. Trata-se de um romance social, que sequencia a vertente inaugurada por José Américo de Almeida, em 1928, com “A bagaceira”. 

         “Os ratos” relata um dia do personagem Naziazeno em sua luta para conseguir pagar a dívida com o leiteiro. Na tentativa de obter a quantia com que fará isso, apela a amigos e se envolve com agiotas, trambiqueiros e toda uma gama de indivíduos inescrupulosos que sobrevivem na cidade devorando-se uns aos outros. A delimitação da trama em “um dia” sugere que dificuldades semelhantes tenderão a se repetir.

           Os recursos da linguagem poética ajudam o narrador a visualizar “por dentro” o personagem e compor fragmentariamente a narrativa. Destacam-se entre eles as inversões, as repetições, o uso de reticências e pontos de exclamação ou interrogação, enfim, todo um conjunto de procedimentos que quebram a linearidade do discurso, instauram o tempo psicológico e ressaltam as marcas afetivas e emocionais. A experiência do autor como psiquiatra também influi na maneira como descreve as obsessões de Naziazeno.

            O clímax da história ocorre nas páginas finais; de posse do dinheiro, obtido por empréstimo, o personagem não consegue dormir devido ao receio de que o roubem. Cada vez mais angustiado, mantém-se em dolorosa alternância entre sono e vigília. Os ratos, que viriam levar-lhe a quantia arduamente obtida, figuram a rapacidade de uma ordem social que estimula a cupidez e constitui permanente ameaça aos socialmente desfavorecidos.   

 

                         TEXTO

                         Os ratos


        Que horas são? Com certeza é tarde. Não tem ouvido o relógio... Se vai prestar muita atenção, acompanhá-lo, vai se espertar ainda mais.

Quantas horas já está aí, nessa cama, enquanto os outros dormem... dormem...? Talvez umas cinco. Cinco horas?! Figura-se esse mesmo espaço de tempo de dia, cinco horas dum dia, dum dia de trabalho, de atividade! Das duas às sete da tarde. Estará mesmo todo esse tempo – das duas às sete – deitado, virando-se... virando-se? (...)

         Um rufar -- um pequeno rufar -- por sobre a esfera do chiado, no forro... Ratos... são ratos! Naziazeno quer distinguir bem. Atenção. O pequeno rufar – um dedilhar leve – perde-se para um dos cantos do forro...

         Ele se põe a escutar agudamente. Um esforço para afastar aquele conjunto amorfo de ruidozinhos, aquele chiado... Lá está, num canto, no chão, o guinchinho, feito de várias notinhas geminadas, fininhas...

São os ratos!... Vai escutar com atenção, a respiração meio parada. Hão de ser muitos: há várias fontes daquele guinchinho, e de quando, no forro, em vários pontos, o rufar...      

A casa está cheia de ratos...

Espera ouvir um barulho de ratos nas panelas, nos pratos, lá na cozinha.

O chiado desapareceu. Agora, é um silêncio e os ratos... (...)  Os ratos vão roer -- já roeram! -- todo o dinheiro!...  (“Os ratos”, Ática, p. 135-138.)

                                          

                     COMENTÁRIOS

 

A incerteza sobre a hora angustia Naziazeno; ele oscila entre a atenção ao relógio e a entrega a suas fantasias. O contraste entre o tempo cronológico e o tempo psicológico ressalta a angústia do personagem, que busca apreender a “duração” da insônia comparando-a com as horas que destina ao trabalho.  A tentativa de pautar por essa escala objetiva os momentos de vigília e inquietação aumenta seu desconforto.

 

O discurso indireto livre, as repetições de palavras e os fragmentos de frase tendem a romper a continuidade discursiva e conferir verossimilhança às obsessões do personagem. São uma forma de representar, ao mesmo tempo, a dúvida quanto ao que de fato ocorre na casa e a ideia fixa de que os ratos virão lhe tirar o dinheiro.

Os ratos aparecem numa gradação que vai do chiado ao rufar (atente-se para a conotação marcial deste substantivo). O que o personagem adivinha, pois não pode ver, evidencia-se pelos sons que se multiplicam. O elemento acústico prevalece sobre o visual e manifesta-se em tons variados, fruto da atenção concentrada e delirante de Naziazeno.

 

O uso do dêitico favorece a representação metonímica dos ratos, que aparecem como “um guinchinho”. O que lá está, em vez dos animais, é o som que produzem. Note-se que a cadeia de diminutivos, em vez de abrandar, reforça o incômodo provocado pelos roedores.

 

A paragrafação do texto não segue um princípio lógico; é determinada pela alternância das ideias de Naziazeno e pelo peso de determinadas revelações – como a de que os ratos “enchem a casa”. Nessa imagem hiperbólica, de caráter impressionista, o elemento visual sobrepõe-se ao acústico.   

 

A retificação do tempo verbal (da locução no futuro para o pretérito perfeito) sugere um desdobramento da personalidade de Naziazeno, em quem parecem conviver duas vozes. A expectativa convive com a certeza -- uma certeza obviamente ilusória, ditada mais pelo temor de perder o dinheiro do que pela evidência dos fatos.

Cruz e Sousa, arte e religiosidade contra o preconceito

      João da Cruz e Sousa (1861-1898) é o mais importante poeta do Simbolismo brasileiro. Filho de escravos alforriados, recebeu uma educação refinada graças ao patrocínio do seu ex-senhor. Isso lhe permitiu aprender francês, latim e grego. Mesmo assim sofreu muito com o preconceito. A amargura que isso lhe causava iria influenciar a temática e sobretudo as imagens da sua poesia.
       Aos sete anos compôs os primeiros versos, que apareceram em jornais da província e tinham características parnasianas. Em 1885 lançou Tropos e Fantasias” em parceria com Virgílio Várzea. Com o tempo percebeu que o racionalismo, o apego ao descritivo e o pendor filosofante dos parnasianos não o satisfaziam. Sentia a necessidade de expressar outras zonas do espírito, o que só seria possível com a abertura ao fluxo do inconsciente e da memória.
       A adesão ao Simbolismo ocorreu em 1893, com a publicação de “Missal” (poemas em prosa) e “Broquéis”, em que se revela com mais intensidade o desgosto com o preconceito. Nesses livros o poeta continua um adepto do culto da forma, mas agora numa dimensão diferente. Passa a manifestar suas inquietações em versos ricos de musicalidade e sugestões cromáticas.
         Sua obra maior, “Últimos Sonetos”, foi publicada em 1905, em Paris, pelo amigo Nestor Vítor.  Nela a dor aparece menos vinculada aos efeitos da discriminação racial; expressa-se como angústia metafísica, anseio de espiritualidade, desejo de libertar a alma do invólucro carnal. O livro mostra um equilíbrio entre o sofrimento e a alegria de ultrapassar os limites terrenos. E traz, como motivo recorrente, o anseio de se libertar da matéria e ir ao encontro do Ser cuja presença ele intui justamente em razão dos males que sua ausência provoca.

                        TEXTO
       
                Ausência misteriosa

Uma hora só que o teu perfil se afasta, 
Um instante sequer, um só minuto
Desta casa que amo -- vago luto
Envolve logo esta morada casta.
        
Tua presença delicada basta
Para tudo tornar claro e impoluto...
Na tua ausência, da Saudade escuto
O pranto que me prende e que me arrasta...
        
Secretas e sutis melancolias
Recuadas na Noite dos meus dias
Vêm para mim, lentas, se aproximando.

E em toda casa, nos objetos, erra 
Um sentimento que não é da Terra
E que eu mudo e sozinho vou sonhando...
                                             
                       COMENTÁRIOS

A oscilação entre erotismo e religiosidade leva a uma esquiva representação do objeto amoroso. O poeta o molda em contornos rarefeitos, que tendem a suprimir a representação corporal. Daí a referência a um perfil que se afasta. Essa é também uma maneira de afirmar a precedência do espírito sobre a matéria.

A gradação descendente, estreitando as referências temporais, reforça o temor de se ver privado do objeto. O uso da segunda pessoa faz os versos soarem como um apelo para que ele não se distancie, embora ao longo do poema não se peça que ele volte.

O apelo à sugestão, próprio da escola simbolista, explica a inconstância com que se apresenta o luto. Apesar de vago, o sentimento que ele provoca extrapola o interior do eu lírico e se projeta no ambiente, maculando o que antes era puro (impoluto). A ideia da ausência como mácula (mancha, no sentido moral) reforça a dimensão purificadora da entidade a quem ele se dirige.  

Nessa cadeia de adjetivos associa-se a pureza à claridade, que se opõe ao negror do luto.  Cores, tons, luz são meios com que o poeta, além de traduzir os contrastes em que se debate a sua alma, procura representar o inefável de sentimentos que oscilam entre o terreno e o sublime.

Os simbolistas usam iniciais maiúsculas para dar a certos estados de alma uma dimensão transcendente. O Símbolo é um meio de vincular a parte ao Todo e, consequentemente, de fazer a subjetividade aparecer na dependência de algo maior. Em vez de dizer que chora ele próprio a Saudade, o eu lírico afirma escutar-Lhe o pranto.

O paradoxo sugere que a tristeza acomete o eu lírico desde tempos remotos. O sentimento provocado pelo afastamento do objeto amoroso vincula-se à memória de antigas perdas, cuja origem é impossível identificar. Isso condiz com a visão psicanalítica de que a melancolia é o luto pela perda de um objeto ideal, que nenhum objeto real consegue suprir.

Esse verso tende a confirmar o que se insinuava desde o início: o objeto não é deste mundo. A solidão e o silêncio referidos na linha seguinte são atitudes próprias de quem cultua e venera, e não de quem sofre por amor (no sentido terreno e mundano).

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Castro Alves, uma voz pela liberdade

Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871) nasceu na fazenda Cabaceiras, perto da vila de Curralinho, hoje chamada Castro Alves (BA). Em 1853 mudou-se com a família para Salvador, onde estuda no colégio de Abílio César Borges e conhece Rui Barbosa. Com a morte da mãe, em 1859, viajou em companhia do pai e da madrasta para Recife. Lá toma contato com as ideias positivistas e recebe influência de Tobias Barreto, então líder estudantil.
         O contato com o Positivismo incutiu-lhe ideias liberais e o despertou para a defesa dos valores democráticos. Entre eles, a igualdade entre os povos e as raças. A preocupação social é uma das marcas da terceira geração romântica, da qual o poeta é o  maior representante. Ele pôs a serviço das grandes causas da época (a Abolição e a República) sua fervente imaginação e seus voos retóricos. Aves como a águia e o condor simbolizam em seus poemas a aspiração humana pela liberdade.
À dimensão militante, que o fez conhecido como “O poeta dos escravos”, associa-se na poética do baiano um sensualismo que se contrapõe aos contornos idealizantes com que a geração anterior pinta a figura da mulher. Mário de Andrade vê nela um erotismo másculo, viril, bem distinto do platonismo presente num Álvares de Azevedo ou num Casimiro de Abreu. As recriminações presentes nesses autores dão lugar, no autor de “Adormecida”, a um sensualismo liberto de culpa, que se espelha no Classicismo e prepara o terreno para as imagens lascivas do parnasiano Olavo Bilac.
Apesar de se afastar da geração anterior, o poeta não consegue se livrar de algumas marcas que a peculiarizam. Uma delas é a melancolia, que por vezes se traduz em medo da fatalidade. Outra é a tendência à morte precoce. As duas se associam em “Mocidade o morte”, poema em que ele tematiza o receio de perder a vida.

                           TEXTO

                    Mocidade e morte  
                                          
Morrer... quando este mundo é um paraíso,
E a alma um cisne de douradas plumas:
Não! O seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das espumas.
Vem! formosa mulher – camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas.
Minh’alma é a borboleta, que espaneja
O pó das asas lúcidas, douradas...

E a mesma voz repete-me terrível,
Com gargalhar sarcástico: – impossível!

Eu sinto em mim o borbulhar do gênio.
Vejo além um futuro radiante:
Avante! – brada-me o talento n’alma! –
E o eco ao longe me repete – avante! –
O futuro... o futuro... no seu seio...
Entre louros e bênçãos dorme a glória!
Após – um nome do universo n’alma,
Um nome escrito no Panteon da história.

E a mesma voz repete funerária: –
Teu Panteon – a pedra mortuária!


                           COMENTÁRIOS

Inicialmente intitulado “O tísico”, esse poema foi escrito sob a impressão causada por uma hemoptise. A morte atemoriza o eu lírico, que se rebela contra a perspectiva do fim e entoa um hino de exaltação à vida. Essa característica o afasta dos poetas da geração precedente, para os quais a morte é um meio às vezes muito desejado de evasão.     

Entre os motivos para o eu lírico rejeitar a morte está o amor das mulheres. O poeta as pinta com um sensualismo vívido, de inegável afirmação carnal, e por esse aspecto antecipa a estética parnasiana. Na representação da mulher ele se vale de uma cadeia metafórica apoiada em elementos naturais: a alma é um cisne a boiar sobre o seio da amante, visto como um lago virgem. É também uma borboleta a espalhar o pó das asas sobre a mulher metaforizada em camélia. Percebe-se, nas duas imagens, uma sutil referência ao ato sexual.

Os dísticos aparecem como um contraponto aos apelos do eu lírico. Neles se manifesta uma voz que, lembrando o corvo de Edgar Allan Poe, representa o inevitável destino. O diálogo interior com esse fantasma é responsável pela alta carga dramática do poema.

Para os românticos, o gênio se define como uma força que emerge das camadas irracionais da mente, um fogo que inflama a imaginação do poeta (daí a imagem do borbulhar). Liga-se à ideia da criação poética como inspiração. À medida que o Parnasianismo se afirma, a visão do poeta inspirado, possesso, dá lugar à do poeta artífice, que tem maior controle racional sobre a criação.

A perspectiva de um futuro glorioso é outra das razões para o eu lírico rejeitar a morte. Morrer tão jovem seria perder a possibilidade de se perpetuar na História. Nesse modo de pensar transparece outra das características do Romantismo, que é o culto à individualidade e, por extensão, às virtudes de um talento excepcional. Sobre este recai o reconhecimento tanto dos homens, quanto de Deus, conforme sugere a referência a louros e bênçãos.

O deslocamento do atributo “funerária” em relação ao sintagma de que faz parte (voz funerária) amplifica o alcance do adjetivo. Dá-lhe maior amplitude semântica, inclusive, por permitir a rima com “mortuária”, que é um de seus sinônimos. Emparelhados, os dois adjetivos fazem ressoar mais forte a inclemente sentença do destino.

Paulo Mendes Campos, a erudição na crônica

                Paulo Mendes Campos é um dos maiores nomes da crônica brasileira. Pertenceu à chamada geração mineira de 45, em que também s...