sábado, 25 de julho de 2020

Dyonélio Machado, a poesia que denuncia

          Para Dyonélio Machado, a poesia é essencial “mesmo na prosa mais prosaica”. Essa importância que ele dá ao poético explica algumas características da sua obra mais famosa, “Os ratos”, publicada em 1935. Trata-se de um romance social, que sequencia a vertente inaugurada por José Américo de Almeida, em 1928, com “A bagaceira”. 

         “Os ratos” relata um dia do personagem Naziazeno em sua luta para conseguir pagar a dívida com o leiteiro. Na tentativa de obter a quantia com que fará isso, apela a amigos e se envolve com agiotas, trambiqueiros e toda uma gama de indivíduos inescrupulosos que sobrevivem na cidade devorando-se uns aos outros. A delimitação da trama em “um dia” sugere que dificuldades semelhantes tenderão a se repetir.

           Os recursos da linguagem poética ajudam o narrador a visualizar “por dentro” o personagem e compor fragmentariamente a narrativa. Destacam-se entre eles as inversões, as repetições, o uso de reticências e pontos de exclamação ou interrogação, enfim, todo um conjunto de procedimentos que quebram a linearidade do discurso, instauram o tempo psicológico e ressaltam as marcas afetivas e emocionais. A experiência do autor como psiquiatra também influi na maneira como descreve as obsessões de Naziazeno.

            O clímax da história ocorre nas páginas finais; de posse do dinheiro, obtido por empréstimo, o personagem não consegue dormir devido ao receio de que o roubem. Cada vez mais angustiado, mantém-se em dolorosa alternância entre sono e vigília. Os ratos, que viriam levar-lhe a quantia arduamente obtida, figuram a rapacidade de uma ordem social que estimula a cupidez e constitui permanente ameaça aos socialmente desfavorecidos.   

 

                         TEXTO

                         Os ratos


        Que horas são? Com certeza é tarde. Não tem ouvido o relógio... Se vai prestar muita atenção, acompanhá-lo, vai se espertar ainda mais.

Quantas horas já está aí, nessa cama, enquanto os outros dormem... dormem...? Talvez umas cinco. Cinco horas?! Figura-se esse mesmo espaço de tempo de dia, cinco horas dum dia, dum dia de trabalho, de atividade! Das duas às sete da tarde. Estará mesmo todo esse tempo – das duas às sete – deitado, virando-se... virando-se? (...)

         Um rufar -- um pequeno rufar -- por sobre a esfera do chiado, no forro... Ratos... são ratos! Naziazeno quer distinguir bem. Atenção. O pequeno rufar – um dedilhar leve – perde-se para um dos cantos do forro...

         Ele se põe a escutar agudamente. Um esforço para afastar aquele conjunto amorfo de ruidozinhos, aquele chiado... Lá está, num canto, no chão, o guinchinho, feito de várias notinhas geminadas, fininhas...

São os ratos!... Vai escutar com atenção, a respiração meio parada. Hão de ser muitos: há várias fontes daquele guinchinho, e de quando, no forro, em vários pontos, o rufar...      

A casa está cheia de ratos...

Espera ouvir um barulho de ratos nas panelas, nos pratos, lá na cozinha.

O chiado desapareceu. Agora, é um silêncio e os ratos... (...)  Os ratos vão roer -- já roeram! -- todo o dinheiro!...  (“Os ratos”, Ática, p. 135-138.)

                                          

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A incerteza sobre a hora angustia Naziazeno; ele oscila entre a atenção ao relógio e a entrega a suas fantasias. O contraste entre o tempo cronológico e o tempo psicológico ressalta a angústia do personagem, que busca apreender a “duração” da insônia comparando-a com as horas que destina ao trabalho.  A tentativa de pautar por essa escala objetiva os momentos de vigília e inquietação aumenta seu desconforto.

 

O discurso indireto livre, as repetições de palavras e os fragmentos de frase tendem a romper a continuidade discursiva e conferir verossimilhança às obsessões do personagem. São uma forma de representar, ao mesmo tempo, a dúvida quanto ao que de fato ocorre na casa e a ideia fixa de que os ratos virão lhe tirar o dinheiro.

Os ratos aparecem numa gradação que vai do chiado ao rufar (atente-se para a conotação marcial deste substantivo). O que o personagem adivinha, pois não pode ver, evidencia-se pelos sons que se multiplicam. O elemento acústico prevalece sobre o visual e manifesta-se em tons variados, fruto da atenção concentrada e delirante de Naziazeno.

 

O uso do dêitico favorece a representação metonímica dos ratos, que aparecem como “um guinchinho”. O que lá está, em vez dos animais, é o som que produzem. Note-se que a cadeia de diminutivos, em vez de abrandar, reforça o incômodo provocado pelos roedores.

 

A paragrafação do texto não segue um princípio lógico; é determinada pela alternância das ideias de Naziazeno e pelo peso de determinadas revelações – como a de que os ratos “enchem a casa”. Nessa imagem hiperbólica, de caráter impressionista, o elemento visual sobrepõe-se ao acústico.   

 

A retificação do tempo verbal (da locução no futuro para o pretérito perfeito) sugere um desdobramento da personalidade de Naziazeno, em quem parecem conviver duas vozes. A expectativa convive com a certeza -- uma certeza obviamente ilusória, ditada mais pelo temor de perder o dinheiro do que pela evidência dos fatos.

Cruz e Sousa, arte e religiosidade contra o preconceito

      João da Cruz e Sousa (1861-1898) é o mais importante poeta do Simbolismo brasileiro. Filho de escravos alforriados, recebeu uma educação refinada graças ao patrocínio do seu ex-senhor. Isso lhe permitiu aprender francês, latim e grego. Mesmo assim sofreu muito com o preconceito. A amargura que isso lhe causava iria influenciar a temática e sobretudo as imagens da sua poesia.
       Aos sete anos compôs os primeiros versos, que apareceram em jornais da província e tinham características parnasianas. Em 1885 lançou Tropos e Fantasias” em parceria com Virgílio Várzea. Com o tempo percebeu que o racionalismo, o apego ao descritivo e o pendor filosofante dos parnasianos não o satisfaziam. Sentia a necessidade de expressar outras zonas do espírito, o que só seria possível com a abertura ao fluxo do inconsciente e da memória.
       A adesão ao Simbolismo ocorreu em 1893, com a publicação de “Missal” (poemas em prosa) e “Broquéis”, em que se revela com mais intensidade o desgosto com o preconceito. Nesses livros o poeta continua um adepto do culto da forma, mas agora numa dimensão diferente. Passa a manifestar suas inquietações em versos ricos de musicalidade e sugestões cromáticas.
         Sua obra maior, “Últimos Sonetos”, foi publicada em 1905, em Paris, pelo amigo Nestor Vítor.  Nela a dor aparece menos vinculada aos efeitos da discriminação racial; expressa-se como angústia metafísica, anseio de espiritualidade, desejo de libertar a alma do invólucro carnal. O livro mostra um equilíbrio entre o sofrimento e a alegria de ultrapassar os limites terrenos. E traz, como motivo recorrente, o anseio de se libertar da matéria e ir ao encontro do Ser cuja presença ele intui justamente em razão dos males que sua ausência provoca.

                        TEXTO
       
                Ausência misteriosa

Uma hora só que o teu perfil se afasta, 
Um instante sequer, um só minuto
Desta casa que amo -- vago luto
Envolve logo esta morada casta.
        
Tua presença delicada basta
Para tudo tornar claro e impoluto...
Na tua ausência, da Saudade escuto
O pranto que me prende e que me arrasta...
        
Secretas e sutis melancolias
Recuadas na Noite dos meus dias
Vêm para mim, lentas, se aproximando.

E em toda casa, nos objetos, erra 
Um sentimento que não é da Terra
E que eu mudo e sozinho vou sonhando...
                                             
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A oscilação entre erotismo e religiosidade leva a uma esquiva representação do objeto amoroso. O poeta o molda em contornos rarefeitos, que tendem a suprimir a representação corporal. Daí a referência a um perfil que se afasta. Essa é também uma maneira de afirmar a precedência do espírito sobre a matéria.

A gradação descendente, estreitando as referências temporais, reforça o temor de se ver privado do objeto. O uso da segunda pessoa faz os versos soarem como um apelo para que ele não se distancie, embora ao longo do poema não se peça que ele volte.

O apelo à sugestão, próprio da escola simbolista, explica a inconstância com que se apresenta o luto. Apesar de vago, o sentimento que ele provoca extrapola o interior do eu lírico e se projeta no ambiente, maculando o que antes era puro (impoluto). A ideia da ausência como mácula (mancha, no sentido moral) reforça a dimensão purificadora da entidade a quem ele se dirige.  

Nessa cadeia de adjetivos associa-se a pureza à claridade, que se opõe ao negror do luto.  Cores, tons, luz são meios com que o poeta, além de traduzir os contrastes em que se debate a sua alma, procura representar o inefável de sentimentos que oscilam entre o terreno e o sublime.

Os simbolistas usam iniciais maiúsculas para dar a certos estados de alma uma dimensão transcendente. O Símbolo é um meio de vincular a parte ao Todo e, consequentemente, de fazer a subjetividade aparecer na dependência de algo maior. Em vez de dizer que chora ele próprio a Saudade, o eu lírico afirma escutar-Lhe o pranto.

O paradoxo sugere que a tristeza acomete o eu lírico desde tempos remotos. O sentimento provocado pelo afastamento do objeto amoroso vincula-se à memória de antigas perdas, cuja origem é impossível identificar. Isso condiz com a visão psicanalítica de que a melancolia é o luto pela perda de um objeto ideal, que nenhum objeto real consegue suprir.

Esse verso tende a confirmar o que se insinuava desde o início: o objeto não é deste mundo. A solidão e o silêncio referidos na linha seguinte são atitudes próprias de quem cultua e venera, e não de quem sofre por amor (no sentido terreno e mundano).

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Castro Alves, uma voz pela liberdade

Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871) nasceu na fazenda Cabaceiras, perto da vila de Curralinho, hoje chamada Castro Alves (BA). Em 1853 mudou-se com a família para Salvador, onde estuda no colégio de Abílio César Borges e conhece Rui Barbosa. Com a morte da mãe, em 1859, viajou em companhia do pai e da madrasta para Recife. Lá toma contato com as ideias positivistas e recebe influência de Tobias Barreto, então líder estudantil.
         O contato com o Positivismo incutiu-lhe ideias liberais e o despertou para a defesa dos valores democráticos. Entre eles, a igualdade entre os povos e as raças. A preocupação social é uma das marcas da terceira geração romântica, da qual o poeta é o  maior representante. Ele pôs a serviço das grandes causas da época (a Abolição e a República) sua fervente imaginação e seus voos retóricos. Aves como a águia e o condor simbolizam em seus poemas a aspiração humana pela liberdade.
À dimensão militante, que o fez conhecido como “O poeta dos escravos”, associa-se na poética do baiano um sensualismo que se contrapõe aos contornos idealizantes com que a geração anterior pinta a figura da mulher. Mário de Andrade vê nela um erotismo másculo, viril, bem distinto do platonismo presente num Álvares de Azevedo ou num Casimiro de Abreu. As recriminações presentes nesses autores dão lugar, no autor de “Adormecida”, a um sensualismo liberto de culpa, que se espelha no Classicismo e prepara o terreno para as imagens lascivas do parnasiano Olavo Bilac.
Apesar de se afastar da geração anterior, o poeta não consegue se livrar de algumas marcas que a peculiarizam. Uma delas é a melancolia, que por vezes se traduz em medo da fatalidade. Outra é a tendência à morte precoce. As duas se associam em “Mocidade o morte”, poema em que ele tematiza o receio de perder a vida.

                           TEXTO

                    Mocidade e morte  
                                          
Morrer... quando este mundo é um paraíso,
E a alma um cisne de douradas plumas:
Não! O seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das espumas.
Vem! formosa mulher – camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas.
Minh’alma é a borboleta, que espaneja
O pó das asas lúcidas, douradas...

E a mesma voz repete-me terrível,
Com gargalhar sarcástico: – impossível!

Eu sinto em mim o borbulhar do gênio.
Vejo além um futuro radiante:
Avante! – brada-me o talento n’alma! –
E o eco ao longe me repete – avante! –
O futuro... o futuro... no seu seio...
Entre louros e bênçãos dorme a glória!
Após – um nome do universo n’alma,
Um nome escrito no Panteon da história.

E a mesma voz repete funerária: –
Teu Panteon – a pedra mortuária!


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Inicialmente intitulado “O tísico”, esse poema foi escrito sob a impressão causada por uma hemoptise. A morte atemoriza o eu lírico, que se rebela contra a perspectiva do fim e entoa um hino de exaltação à vida. Essa característica o afasta dos poetas da geração precedente, para os quais a morte é um meio às vezes muito desejado de evasão.     

Entre os motivos para o eu lírico rejeitar a morte está o amor das mulheres. O poeta as pinta com um sensualismo vívido, de inegável afirmação carnal, e por esse aspecto antecipa a estética parnasiana. Na representação da mulher ele se vale de uma cadeia metafórica apoiada em elementos naturais: a alma é um cisne a boiar sobre o seio da amante, visto como um lago virgem. É também uma borboleta a espalhar o pó das asas sobre a mulher metaforizada em camélia. Percebe-se, nas duas imagens, uma sutil referência ao ato sexual.

Os dísticos aparecem como um contraponto aos apelos do eu lírico. Neles se manifesta uma voz que, lembrando o corvo de Edgar Allan Poe, representa o inevitável destino. O diálogo interior com esse fantasma é responsável pela alta carga dramática do poema.

Para os românticos, o gênio se define como uma força que emerge das camadas irracionais da mente, um fogo que inflama a imaginação do poeta (daí a imagem do borbulhar). Liga-se à ideia da criação poética como inspiração. À medida que o Parnasianismo se afirma, a visão do poeta inspirado, possesso, dá lugar à do poeta artífice, que tem maior controle racional sobre a criação.

A perspectiva de um futuro glorioso é outra das razões para o eu lírico rejeitar a morte. Morrer tão jovem seria perder a possibilidade de se perpetuar na História. Nesse modo de pensar transparece outra das características do Romantismo, que é o culto à individualidade e, por extensão, às virtudes de um talento excepcional. Sobre este recai o reconhecimento tanto dos homens, quanto de Deus, conforme sugere a referência a louros e bênçãos.

O deslocamento do atributo “funerária” em relação ao sintagma de que faz parte (voz funerária) amplifica o alcance do adjetivo. Dá-lhe maior amplitude semântica, inclusive, por permitir a rima com “mortuária”, que é um de seus sinônimos. Emparelhados, os dois adjetivos fazem ressoar mais forte a inclemente sentença do destino.

Carlos Heitor Cony, crise espiritual e engajamento político


Carlos Heitor Cony nasceu em 14 de março de 1926, no Rio de Janeiro. Residiu por um breve tempo em Niterói, onde ocorreu um episódio que marcou sua infância. Devido ao susto provocado pelo voo rasante de um hidroavião, perdeu a fala. Como somente aos cinco anos viria a pronunciar as primeiras palavras, a família preferiu educá-lo em casa. Mais tarde, na escola, o menino apresentou problemas de dicção que o tornavam objeto das brincadeiras dos colegas. Vendo que se fazia entender melhor escrevendo, passou a fazer isso com regularidade.
Cony quis ser padre aos dezoito anos e chegou a ingressar no Seminário Diocesano de São José, em Rio Comprido (RJ). Lá entrou em crise por falta de vocação. O relato dessa experiência encontra-se no romance autobiográfico “Informação ao crucificado”, que segundo Renato Lessa “precede existencialmente todos os livros escritos por Cony”. A última frase dessa obra (sobre a morte de Deus) marca o rompimento do autor com os devaneios piedosos da infância e inaugura o ceticismo que permeará sua produção posterior. Mas sobretudo abre as portas para o homem político, engajado, que fará da literatura (também) um instrumento de resistência contra a opressão. O melhor exemplo disso são os textos que publicou na “Folha de São Paulo” no tempo da ditadura militar.
Cony escreveu romances, reportagens, contos, crônicas e adaptações de clássicos da literatura. Por essa vasta e significativa obra, foi eleito para a Cadeira nº 3 da Academia Brasileira de Letras. Em seus livros de ficção, angústias sexuais e metafísicas se alternam com dúvidas sobre o lugar do indivíduo na sociedade. Inspirado no existencialismo sartriano, que se reflete em romances como “O ventre”, o autor tematiza o problema da liberdade e da solidão. Na crônica, gênero em que também é mestre, tempera com erudição e malícia a abordagem do cotidiano.


                                     TEXTO  

                                A arte e a vida
  
            O cinema e a TV causam a violência na vida real? Ou é a vida real que inspira a violência no cinema e na TV? O assunto é vasto e complicado, mas, acima de tudo, lamentável. Em qualquer das hipóteses constatamos o precário verniz da civilização humana.
         Quando Caim matou Abel não havia cinema nem TV. A futilidade do primeiro crime da espécie humana, narrado na Bíblia, seria um incentivo à criminalidade? Relatos em livros históricos de outras civilizações, que não a ocidental cristã, também estão cheios de crimes equivalentes.
            Na outra ponta da corda, a leitura de feitos da cavalaria andante fez Dom Quixote sair pelo mundo tentando fazer justiça à sua maneira. Quem influencia quem?
           Infelizmente, a realidade humana é pouco recomendável. Não adianta culpar as expressões ficcionais desta realidade. Para uso próprio, há muito que troco de canal quando vejo na TV uma arma apontada para alguém, seja bandido ou mocinho. Evito até mesmo os westerns, que equivalem ao teatro grego em versão americanizada.
         Não creio estar perdendo muita coisa. Na arte, como na vida, tudo devia ser melhor. E isso será possível quando o homem for melhor.


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Abordando o tema da violência, o cronista indiretamente remete a um debate que remonta a Platão e Aristóteles. O primeiro afirmava que os poetas, ao expor as fraquezas dos deuses e heróis, constituíam mau exemplo para a juventude. O segundo considerava que essa exposição tinha um poder liberador (catártico). Cony se recusa a optar por um ou outro ponto de vista. Acha que a raiz do problema está próprio homem.

A metáfora destaca a superficialidade do processo civilizatório, que “lustra” porém não modifica a natureza do homem. Em termos freudianos, apenas lhe aumenta o mal-estar, já que é impossível a renúncia total aos impulsos (pulsões) destrutivos. Essa constatação torna irrelevante que se dê uma resposta às perguntas apresentadas no início.

A obviedade da informação aparentemente reforça que a realidade (ou seja, a vida) influencia a arte. O argumento a seguir apresentado, no entanto, confirma a complexidade da questão. Como não se pode considerar o assassinato de Abel por Caim como um primeiro estímulo para outros crimes, não existiria uma matriz real para a violência.

A transição entre os parágrafos se faz por meio de um operador argumentativo de caráter metafórico, equivalente a “por outro lado”. O autor agora enfoca a possibilidade oposta, ou seja, a de que a arte influencie a vida. Mesmo considerando a motivação livresca para o impulso justiceiro de Dom Quixote, ele prefere manter a questão no ar.   

A referência em primeira pessoa confirma o caráter subjetivo da crônica. Ela é um gênero em que prevalecem o impressionismo, a informalidade, o tom de conversa com o leitor. Não por acaso o cronista encerra o texto (e o debate) dando um depoimento sobre suas preferências televisivas e seu pacifismo. Para ele isso conta mais do que responder objetivamente ao questionamento proposto.

A ressalva se justifica por os westerns terem herdado do teatro grego a dimensão trágica. Nesse âmbito a violência é positiva, pois serve para testar os limites morais do homem.  Isso é bem diferente da gratuidade com que ela frequentemente aparece no cinema e na TV.

domingo, 19 de julho de 2020

Mário Quintana, a felicidade está nas coisas simples


Mario Quintana nasceu em Alegrete (MG), no ano de 1906, e se mudou para Porto Alegre em 1919. Estudou no Colégio Militar, onde publicou seus primeiros textos literários. Trabalhando para a Editora Globo, traduziu várias obras da literatura universal, entre elas “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust, e “Mrs. Dalloway”, de Virginia Woolf. Em 1940 publicou seu primeiro livro, “A rua dos cataventos”, dando início à carreira de poeta, prosador e autor infantil.
Discreto, evitava falar sobre si mesmo por achar que “toda confissão não transfigurada pela arte é indecente”. Considerava que sua vida estava em seus poemas. Aos que o julgavam tímido, ou modesto, respondia que não confundissem modéstia ou timidez com introspecção. Preferia viver em surdina, longe do burburinho que rouba ao artista a solidão -- seu alimento essencial.
Quintana celebra em sua lírica os pequenos gestos, a contemplação da natureza, a simplicidade do cotidiano. O progresso e a modernidade o horrorizam por serem a negação de tudo isso. Seu lugar preferido é a cidade do interior, cujo ambiente ele reproduz com uma nostalgia quase religiosa. Na cidade grande os homens competem e são cada vez mais tentados à ambição. Para ele, a felicidade está em se conformar com pouco. Aos que só se satisfazem residindo em grandes espaços, o poeta responde com uma sabedoria a que não falta humor: “Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas.”
Fiel a esse modo de pensar, ele viveu e criou preocupado em não perder as coisas mais valiosas. Para isso marchou por conta própria, indiferente a quem pretendesse atravancar o seu caminho. “Eles passarão.../ eu passarinho”, conforme cantou no “Poeminha do contra”. Poucos como ele manifestaram a disposição de ser contra, rompendo com o mundo e suas falsas glorificações; essa era também uma forma de melhor se preparar para a morte.


             TEXTO
              Soneto

Quando eu morrer e no frescor de lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua...
Nada mais quero com nenhum de vós!

Quero é ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão...
Que lindo a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!...

Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas..

E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto...

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Imagens como “frescor de lua” e “quieta rua” sugerem a paz e o conforto que o eu lírico espera da morte. Ele encara a possibilidade do fim com a expectativa de quem muda de casa e antevê na nova morada o sossego que não encontrou neste mundo.  

A indiferença para com os vivos complementa a aceitação da morte. Sugere uma autossuficiência e mesmo um desprezo que lembram o “desdém dos mortos”, de que fala Machado de Assis. Esse desdém já se insinua no verso anterior, com o emprego do verbo “deixar” na segunda pessoa do plural -- uma forma polida, porém enérgica, de cortar os laços com os que aqui ficarem.

A ausência de concordância do adjetivo com o substantivo parece isolar a expressão “Que lindo” da cadeia sintática, conferindo-lhe a natureza de uma exclamação. O tom emocionalmente exaltado transfere-se ao vocativo, que nomeia seus novos companheiros, ou seja, os que estando mortos nada mais têm a ver com os vivos.

O poeta sugere que, morto, terá todo o tempo necessário para completar seus poemas. Essa é uma forma de contrapor o repouso da eternidade às preocupações deste mundo, marcado pela pressa e a agitação.   
  
O plural de “pôr de sol” é “pores de sol”. Com a liberdade própria da criação poética, o autor se desvia da norma e opta por um plural que preserva a eufonia, a cadência e a métrica. Além do mais, pela ênfase que dá ao substantivo, valoriza a sucessão e a variedade do crepúsculo, que introduz no terceto uma sequência de elementos com forte apelo lírico.     

O poeta urde as palavras, que o eternizam, daí a metáfora “fios de vida” para representar o triunfo sobre a morte. O fato de apresentá-la animizada, no verso anterior, realça o dramatismo desse combate, cujo desfecho assinala a vitória da arte sobre o esquecimento.


José Américo de Almeida, algo de novo sob o sol



        José Américo de Almeida (10/01/1887-10/03/1980) tem importância histórica para a nossa literatura. Com “A bagaceira”, inaugurou o moderno regionalismo brasileiro. Quando o romance apareceu, em 1928, foi saudado pelo crítico Alceu Amoroso Lima como algo de realmente novo. Novo porque alargava as conquistas de 1922, acrescentando à liberdade linguística e ao antiacademicismo a representação dos conflitos sociais. Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado seguiriam a trilha aberta pelo paraibano.  
         Conhecedor profundo do Nordeste, onde iniciou destacada carreira política, José Américo revela nessa obra os contrastes de um sistema perpetuador de exclusão e miséria. De um lado está o senhor de engenho, dono da terra e de tudo que nela se encontra (inclusive as pessoas); do outro estão os trabalhadores do eito, condenados a uma rotina indigna a fim de enriquecer os patrões.
    Segundo Rachel de Queiroz, “A bagaceira” é o romance que Euclides da Cunha teria escrito. A aproximação se justifica tanto pela temática, quanto pelo estilo. Pelo tema porque o romance ilustra, no plano ficcional, algumas das marcas fisiográficas e humanas da região estudada pelo autor de “Os Sertões”. E pelo estilo porque há na linguagem de ambos o gosto pelo vocabulário erudito, pela plasticidade das imagens e pelo tom sentencioso.
     Em José Américo, o tom sentencioso às vezes prejudica a naturalidade da narrativa, pois representa uma excessiva intromissão do autor. Esse traço é no entanto superado pela exuberância do estilo e a densidade das personagens. A conjugação das pressões sociais com as peculiaridades de crenças e valores faz com que tenham uma experiência trágica da vida. Nesse contexto extremo, marcado inclusive pela rivalidade entre indivíduos de uma mesma classe, não é o sol o maior inimigo.

                            TEXTO
                                             
                         A bagaceira

      Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos – esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres.
     Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e trêmulos, num passo arrastado de quem leva as pernas, em vez de ser levado por elas.
     Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam. Expulsos de seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.
     Fugiam do sol e o sol guiava-os nesse forçado nomadismo. (...)
    Vinham escoteiros. Menos os hidrópicos – doentes da alimentação tóxica – com os fardos das barrigas alarmantes. 
      Lúcio almoçava com o sentido nos retirantes. Escondia côdeas de pão para distribuir com eles, como quem lança migalhas a aves de arribação.
     A cabroeira escarinha metia-os à bulha:
     -- Vem tirar a barriga da miséria...
     Párias da bagaceira, vítimas de uma emperrada organização do trabalho e de uma dependência que os desumanizava, eram os mais insensíveis ao martírio das retiradas.
    A colisão dos meios pronunciava-se no contato das migrações periódicas. Os sertanejos eram malvistos nos brejos. E o nome de brejeiro, cruelmente pejorativo. (...)
      Dagoberto olhava por olhar, indiferente a essa tragédia viva.
       A seca representava a valorização da safra. Os senhores de engenho, de uma avidez vã, refaziam-se da depreciação dos tempos normais à custa da desgraça periódica.


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O efeito dos paradoxos é destacar a onipresença da morte sob o império cíclico da seca. Em tal cenário o que se renova não é a vida, mas a destruição.

O visualismo é uma das marcas do estilo do autor, que tem na representação física dos retirantes um instrumento de crítica social. Com isso, ele intensifica a denúncia da miséria, que imprime nos corpos a sua marca. A imagem, de cunho impressionista, é sublinhada pelo recurso expressionista da aliteração.  

A alusão bíblica se reforça pela referência ao fogo, que metonimicamente conduz a “sol” e daí a “seca”. A cena, evocando o castigo infligido ao primeiro homem, remete ao imaginário religioso. Nessa passagem, o narrador sintoniza com a fantasia popular; posteriormente demonstrará empatia com as ideias progressistas de Lúcio, que vê injustiça social onde o povo vê castigo.  

A condição de virem escoteiros (sem bagagem) é própria da penúria dos retirantes. Quem escapa a essa condição o faz, ironicamente, carregando as barrigas dilatadas pela hidropisia. Essa imagem visual, juntamente com a referência aos corpos que dançam, destaca o peso da caminhada.

A atitude de Lúcio (sutilmente comparado a São Francisco) contrasta com a do pai, Dagoberto, que se mantém insensível ao êxodo dos retirantes. A rivalidade entre o senhor de engenho e o filho permeia todo o romance e simboliza o choque entre a ordem tradicional e os anseios de mudança. O conflito entre os dois se intensificará com a disputa pelo amor da retirante Soledade.

A seca põe lado a lado brejeiros e sertanejos. Envolvidos na brutal rotina da bagaceira, os brejeiros não percebem que são tão vítimas quanto os que emigram do sertão em busca de uma vida melhor. Essa inconsciência alimenta rivalidades absurdas, que impedem a percepção do verdadeiro inimigo.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Chico Anysio, do riso à crítica social

        O Brasil reconhece em Chico Anysio um artista múltiplo, que tem no riso o denominador comum. Como ator humorístico, foi absoluto. Ninguém o igualava na capacidade de criar tipos, cada qual com voz, fala, fisionomia e trejeitos próprios. Já se disse que ele não representava -- “era” cada um dos personagens que criou.
         Além de atuar, escrevia para o teatro e a televisão, onde chegou a ter um programa diário por vários anos. Seus textos apareceram também em livros de crônicas e de pequenas narrativas às vezes centradas em seus personagens -- como o Pantaleão de “É mentira, Terta?”. Em muitos dos “causos” que conta, num estilo espontâneo e oral, revela-se o modo de ser do homem nordestino. Seus textos refletem o contato com pessoas do povo, algumas delas tão curiosas a ponto de lhe servirem de referência para a criação dos tipos que imortalizou na TV.
           Uma das marcas do seu humor é a preocupação social, que transparece na criação de personagens como o professor Raimundo ou Justo Veríssimo. Na figura do velho mestre, o humorista criticava a situação econômica do magistério num país em que a educação raramente é prioridade dos governos. Ao protestar contra os parcos contracheques dessa categoria, tornou famoso o bordão: “E o salário, ó.” Já a sinceridade do político ladino constitui o avesso da hipocrisia com que grande parte dos nossos homens públicos mascara o desprezo que sente pelo povo.
         A criação de personagens como esses reforça a concepção que
Chico Anyisio tinha do humor; para além de divertir, o riso devia fazer pensar, revelando as deformações do indivíduo e as injustiças sociais. Ao humorista cabe expor o que há de errado na sociedade, para que outros procedam às transformações necessárias. Ele levava o humor a sério, considerava-o instrumento de denúncia. Deixou isso bem claro quando afirmou em uma de suas entrevistas: “Eu não tenho possibilidade de consertar nada, mas tenho a obrigação de denunciar tudo”.
      Chico Anysio não teria sido o humorista que foi se não associasse a preocupação social à consciência linguística. O humor, afinal de contas, está nas palavras. O que há de risível em pessoas, fatos, situações deriva sobretudo da forma de os representar. Para torná-los engraçados é preciso dominar uma retórica em cujo repertório se incluem figuras de linguagem, jogos vocabulares, frases de efeito, aproximação de elementos contrastantes. Chico dominava bem esses recursos, utilizando-os por vezes à exaustão conforme se poderá ver no texto abaixo.
          No retrato até então inédito que faz de si, publicado em “O Globo” por ocasião da sua morte, o artista alia o humor ao lirismo (ver texto completo em http://oglobo.globo.com/cultura/um-autorretrato-inedito-de-chico-anysio-4428439#ixzz1qjayyKYr ). O mergulho no passado é uma das marcas da “escrita do eu”, que busca recompor vivências perdidas no tempo. Mesmo num escrito tão pessoal, manifesta-se a dimensão coletiva. O autor amplifica as referências subjetivas num “nós” que engloba meninos pobres como ele, e com essa visão solidária afirma sua brasilidade.
          
                          TEXTO

                            O menino

Vou fazer um apelo. É o caso de um menino desaparecido.
Ele tem 11 anos, mas parece menos; pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos.
É um menino normal, ou seja: subnutrido, desses milhares de meninos que não pediram pra nascer; ao contrário: nasceram pra pedir.
Calado demais pra sua idade, sofrido demais pra sua idade, com idade demais pra sua idade. É, como a maioria, um desses meninos de 11 anos que ainda não tiveram infância.
Parece ser menor carente, mas, se é, não sabe disso. Nunca esteve na Febem, portanto, não teve tempo de aprender a ser criança-problema. Anda descalço por amor à bola. (...)
Do amor não correspondido pela professora, descobriu que viver dói. Viveu cada verso de "Romeu e Julieta", sem nunca ter lido a história.
Foi Dom Quixote sem precisar de Cervantes e sabe, por intuição, que o mundo pode ser um inferno ou uma badalação, dependendo se ele é visto pelo Nelson Rodrigues ou pelo Gilberto Braga. (...).
Tímido até a ousadia, seus silêncios gritavam nos cantos da casa e seus prantos eram goteiras no telhado de sua alma.
Trajava, na ocasião em que desapareceu, uns olhos pretos muito assustados e eu não digo isso pra ser original: é que a primeira coisa que chama a atenção no menino são os grandes olhos, desproporcionais ao tamanho do rosto. (...)
Foi visto pela última vez com uma pipa na mão, mas é de todo improvável que a pipa o tenha empinado. Se bem que, sonhador do jeito que ele é, não duvido nada.
Sequestrado, não foi, porque é um menino que nasceu sem resgate.
Como vocês veem, é um menino comum, desses que desaparecem às dezenas todas os dias.
Mas se alguém souber de alguma notícia, me procure, por favor, porque... ou eu encontro de novo esse menino que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim.

                       COMENTÁRIOS

Um dos recursos explorados pelo autor é a repetição de componentes finais da frase (epístrofe). Esse procedimento, comum na prosa e na poesia, permite a simétrica recorrência de palavras, sintagmas ou orações. Nas duas passagens marcadas, o humor decorre da quebra do paralelismo semântico no terceiro segmento, que é incongruente em relação aos demais por referir uma grandeza inquantificável; não se pode, do ponto de vista lógico, parecer “menos” brasileiro ou ter idade “demais” para a idade.
Ao considerar a subnutrição como normalidade, o autor alude às crianças que, como ele, têm uma infância difícil devido à condição social. O jogo presente na repetição invertida dos termos (antimetábole) reforça o tom de protesto, pois a insatisfação com a vida (não pedir para nascer) decorre da miséria a que se foi relegado (nascer para pedir).   
Irônica associação entre pobreza e anseio de liberdade. O amor à bola remete ao futebol, um dos principais instrumentos de ascensão social para grande parte das crianças pobres do Brasil. É sintomático que essa passagem apareça pouco depois da referência à Febem.  
Humor e lirismo se alternam para compor o retrato do menino que o adulto busca reencontrar. Alguns de seus traços -- como timidez, introversão, sentimentalismo -- reforçam-se por meio do paradoxo, da hipérbole e da metáfora. A duplicação desta última figura (goteira/telhado) chega ao rebuscamento num período já tão retoricamente inflado. 
 O texto se estrutura como um “anúncio de desaparecido”. É comum nesse tipo de gênero a referencia à indumentária que a pessoa usava na última vez em que foi vista. A informação de que o menino “trajava uns olhos muito assustados” não constitui um sinal objetivo, mas se coaduna com o tipo de busca empreendido pelo autor. O menino não se perdeu no espaço, mas no tempo, ou seja, em si mesmo. Daí a perplexidade do olhar.
 A desnecessária informação de que “é improvável que a pipa o tenha empinado” evoca, por contraste, a magreza do menino. A essa característica física sucede outra, psicológica, promovida pela metonímia associada ao brinquedo; seguir a pipa é seguir o sonho. A aliteração do fonema /p/ reforça a dimensão lúdica da frase.
       

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