domingo, 19 de julho de 2020

José Américo de Almeida, algo de novo sob o sol



        José Américo de Almeida (10/01/1887-10/03/1980) tem importância histórica para a nossa literatura. Com “A bagaceira”, inaugurou o moderno regionalismo brasileiro. Quando o romance apareceu, em 1928, foi saudado pelo crítico Alceu Amoroso Lima como algo de realmente novo. Novo porque alargava as conquistas de 1922, acrescentando à liberdade linguística e ao antiacademicismo a representação dos conflitos sociais. Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado seguiriam a trilha aberta pelo paraibano.  
         Conhecedor profundo do Nordeste, onde iniciou destacada carreira política, José Américo revela nessa obra os contrastes de um sistema perpetuador de exclusão e miséria. De um lado está o senhor de engenho, dono da terra e de tudo que nela se encontra (inclusive as pessoas); do outro estão os trabalhadores do eito, condenados a uma rotina indigna a fim de enriquecer os patrões.
    Segundo Rachel de Queiroz, “A bagaceira” é o romance que Euclides da Cunha teria escrito. A aproximação se justifica tanto pela temática, quanto pelo estilo. Pelo tema porque o romance ilustra, no plano ficcional, algumas das marcas fisiográficas e humanas da região estudada pelo autor de “Os Sertões”. E pelo estilo porque há na linguagem de ambos o gosto pelo vocabulário erudito, pela plasticidade das imagens e pelo tom sentencioso.
     Em José Américo, o tom sentencioso às vezes prejudica a naturalidade da narrativa, pois representa uma excessiva intromissão do autor. Esse traço é no entanto superado pela exuberância do estilo e a densidade das personagens. A conjugação das pressões sociais com as peculiaridades de crenças e valores faz com que tenham uma experiência trágica da vida. Nesse contexto extremo, marcado inclusive pela rivalidade entre indivíduos de uma mesma classe, não é o sol o maior inimigo.

                            TEXTO
                                             
                         A bagaceira

      Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos – esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres.
     Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e trêmulos, num passo arrastado de quem leva as pernas, em vez de ser levado por elas.
     Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam. Expulsos de seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.
     Fugiam do sol e o sol guiava-os nesse forçado nomadismo. (...)
    Vinham escoteiros. Menos os hidrópicos – doentes da alimentação tóxica – com os fardos das barrigas alarmantes. 
      Lúcio almoçava com o sentido nos retirantes. Escondia côdeas de pão para distribuir com eles, como quem lança migalhas a aves de arribação.
     A cabroeira escarinha metia-os à bulha:
     -- Vem tirar a barriga da miséria...
     Párias da bagaceira, vítimas de uma emperrada organização do trabalho e de uma dependência que os desumanizava, eram os mais insensíveis ao martírio das retiradas.
    A colisão dos meios pronunciava-se no contato das migrações periódicas. Os sertanejos eram malvistos nos brejos. E o nome de brejeiro, cruelmente pejorativo. (...)
      Dagoberto olhava por olhar, indiferente a essa tragédia viva.
       A seca representava a valorização da safra. Os senhores de engenho, de uma avidez vã, refaziam-se da depreciação dos tempos normais à custa da desgraça periódica.


                     COMENTÁRIOS

O efeito dos paradoxos é destacar a onipresença da morte sob o império cíclico da seca. Em tal cenário o que se renova não é a vida, mas a destruição.

O visualismo é uma das marcas do estilo do autor, que tem na representação física dos retirantes um instrumento de crítica social. Com isso, ele intensifica a denúncia da miséria, que imprime nos corpos a sua marca. A imagem, de cunho impressionista, é sublinhada pelo recurso expressionista da aliteração.  

A alusão bíblica se reforça pela referência ao fogo, que metonimicamente conduz a “sol” e daí a “seca”. A cena, evocando o castigo infligido ao primeiro homem, remete ao imaginário religioso. Nessa passagem, o narrador sintoniza com a fantasia popular; posteriormente demonstrará empatia com as ideias progressistas de Lúcio, que vê injustiça social onde o povo vê castigo.  

A condição de virem escoteiros (sem bagagem) é própria da penúria dos retirantes. Quem escapa a essa condição o faz, ironicamente, carregando as barrigas dilatadas pela hidropisia. Essa imagem visual, juntamente com a referência aos corpos que dançam, destaca o peso da caminhada.

A atitude de Lúcio (sutilmente comparado a São Francisco) contrasta com a do pai, Dagoberto, que se mantém insensível ao êxodo dos retirantes. A rivalidade entre o senhor de engenho e o filho permeia todo o romance e simboliza o choque entre a ordem tradicional e os anseios de mudança. O conflito entre os dois se intensificará com a disputa pelo amor da retirante Soledade.

A seca põe lado a lado brejeiros e sertanejos. Envolvidos na brutal rotina da bagaceira, os brejeiros não percebem que são tão vítimas quanto os que emigram do sertão em busca de uma vida melhor. Essa inconsciência alimenta rivalidades absurdas, que impedem a percepção do verdadeiro inimigo.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Chico Anysio, do riso à crítica social

        O Brasil reconhece em Chico Anysio um artista múltiplo, que tem no riso o denominador comum. Como ator humorístico, foi absoluto. Ninguém o igualava na capacidade de criar tipos, cada qual com voz, fala, fisionomia e trejeitos próprios. Já se disse que ele não representava -- “era” cada um dos personagens que criou.
         Além de atuar, escrevia para o teatro e a televisão, onde chegou a ter um programa diário por vários anos. Seus textos apareceram também em livros de crônicas e de pequenas narrativas às vezes centradas em seus personagens -- como o Pantaleão de “É mentira, Terta?”. Em muitos dos “causos” que conta, num estilo espontâneo e oral, revela-se o modo de ser do homem nordestino. Seus textos refletem o contato com pessoas do povo, algumas delas tão curiosas a ponto de lhe servirem de referência para a criação dos tipos que imortalizou na TV.
           Uma das marcas do seu humor é a preocupação social, que transparece na criação de personagens como o professor Raimundo ou Justo Veríssimo. Na figura do velho mestre, o humorista criticava a situação econômica do magistério num país em que a educação raramente é prioridade dos governos. Ao protestar contra os parcos contracheques dessa categoria, tornou famoso o bordão: “E o salário, ó.” Já a sinceridade do político ladino constitui o avesso da hipocrisia com que grande parte dos nossos homens públicos mascara o desprezo que sente pelo povo.
         A criação de personagens como esses reforça a concepção que
Chico Anyisio tinha do humor; para além de divertir, o riso devia fazer pensar, revelando as deformações do indivíduo e as injustiças sociais. Ao humorista cabe expor o que há de errado na sociedade, para que outros procedam às transformações necessárias. Ele levava o humor a sério, considerava-o instrumento de denúncia. Deixou isso bem claro quando afirmou em uma de suas entrevistas: “Eu não tenho possibilidade de consertar nada, mas tenho a obrigação de denunciar tudo”.
      Chico Anysio não teria sido o humorista que foi se não associasse a preocupação social à consciência linguística. O humor, afinal de contas, está nas palavras. O que há de risível em pessoas, fatos, situações deriva sobretudo da forma de os representar. Para torná-los engraçados é preciso dominar uma retórica em cujo repertório se incluem figuras de linguagem, jogos vocabulares, frases de efeito, aproximação de elementos contrastantes. Chico dominava bem esses recursos, utilizando-os por vezes à exaustão conforme se poderá ver no texto abaixo.
          No retrato até então inédito que faz de si, publicado em “O Globo” por ocasião da sua morte, o artista alia o humor ao lirismo (ver texto completo em http://oglobo.globo.com/cultura/um-autorretrato-inedito-de-chico-anysio-4428439#ixzz1qjayyKYr ). O mergulho no passado é uma das marcas da “escrita do eu”, que busca recompor vivências perdidas no tempo. Mesmo num escrito tão pessoal, manifesta-se a dimensão coletiva. O autor amplifica as referências subjetivas num “nós” que engloba meninos pobres como ele, e com essa visão solidária afirma sua brasilidade.
          
                          TEXTO

                            O menino

Vou fazer um apelo. É o caso de um menino desaparecido.
Ele tem 11 anos, mas parece menos; pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos.
É um menino normal, ou seja: subnutrido, desses milhares de meninos que não pediram pra nascer; ao contrário: nasceram pra pedir.
Calado demais pra sua idade, sofrido demais pra sua idade, com idade demais pra sua idade. É, como a maioria, um desses meninos de 11 anos que ainda não tiveram infância.
Parece ser menor carente, mas, se é, não sabe disso. Nunca esteve na Febem, portanto, não teve tempo de aprender a ser criança-problema. Anda descalço por amor à bola. (...)
Do amor não correspondido pela professora, descobriu que viver dói. Viveu cada verso de "Romeu e Julieta", sem nunca ter lido a história.
Foi Dom Quixote sem precisar de Cervantes e sabe, por intuição, que o mundo pode ser um inferno ou uma badalação, dependendo se ele é visto pelo Nelson Rodrigues ou pelo Gilberto Braga. (...).
Tímido até a ousadia, seus silêncios gritavam nos cantos da casa e seus prantos eram goteiras no telhado de sua alma.
Trajava, na ocasião em que desapareceu, uns olhos pretos muito assustados e eu não digo isso pra ser original: é que a primeira coisa que chama a atenção no menino são os grandes olhos, desproporcionais ao tamanho do rosto. (...)
Foi visto pela última vez com uma pipa na mão, mas é de todo improvável que a pipa o tenha empinado. Se bem que, sonhador do jeito que ele é, não duvido nada.
Sequestrado, não foi, porque é um menino que nasceu sem resgate.
Como vocês veem, é um menino comum, desses que desaparecem às dezenas todas os dias.
Mas se alguém souber de alguma notícia, me procure, por favor, porque... ou eu encontro de novo esse menino que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim.

                       COMENTÁRIOS

Um dos recursos explorados pelo autor é a repetição de componentes finais da frase (epístrofe). Esse procedimento, comum na prosa e na poesia, permite a simétrica recorrência de palavras, sintagmas ou orações. Nas duas passagens marcadas, o humor decorre da quebra do paralelismo semântico no terceiro segmento, que é incongruente em relação aos demais por referir uma grandeza inquantificável; não se pode, do ponto de vista lógico, parecer “menos” brasileiro ou ter idade “demais” para a idade.
Ao considerar a subnutrição como normalidade, o autor alude às crianças que, como ele, têm uma infância difícil devido à condição social. O jogo presente na repetição invertida dos termos (antimetábole) reforça o tom de protesto, pois a insatisfação com a vida (não pedir para nascer) decorre da miséria a que se foi relegado (nascer para pedir).   
Irônica associação entre pobreza e anseio de liberdade. O amor à bola remete ao futebol, um dos principais instrumentos de ascensão social para grande parte das crianças pobres do Brasil. É sintomático que essa passagem apareça pouco depois da referência à Febem.  
Humor e lirismo se alternam para compor o retrato do menino que o adulto busca reencontrar. Alguns de seus traços -- como timidez, introversão, sentimentalismo -- reforçam-se por meio do paradoxo, da hipérbole e da metáfora. A duplicação desta última figura (goteira/telhado) chega ao rebuscamento num período já tão retoricamente inflado. 
 O texto se estrutura como um “anúncio de desaparecido”. É comum nesse tipo de gênero a referencia à indumentária que a pessoa usava na última vez em que foi vista. A informação de que o menino “trajava uns olhos muito assustados” não constitui um sinal objetivo, mas se coaduna com o tipo de busca empreendido pelo autor. O menino não se perdeu no espaço, mas no tempo, ou seja, em si mesmo. Daí a perplexidade do olhar.
 A desnecessária informação de que “é improvável que a pipa o tenha empinado” evoca, por contraste, a magreza do menino. A essa característica física sucede outra, psicológica, promovida pela metonímia associada ao brinquedo; seguir a pipa é seguir o sonho. A aliteração do fonema /p/ reforça a dimensão lúdica da frase.
       

terça-feira, 14 de julho de 2020

José Paulo Paes, a poesia em jogo

         José Paulo Paes nasceu em Taquaritinga (SP), no dia 22 de julho de 1926, e morreu em 1998 na cidade de São Paulo. Estudou Química Industrial antes de se dedicar à literatura, sua verdadeira vocação. Atribui-se o despertar do seu gosto pelas letras à influência do avô, que desde cedo o estimulou a tomar contato com autores representativos da literatura nacional e estrangeira. Em Curitiba, para onde se mudara em 1944, frequentou os círculos literários do Café Belas Letras e da Livraria Ghignone. Por essa época atuou como colaborador na revista Joaquim, editada por Dalton Trevisan.
        Escreveu de início para adultos. Posteriormente, o prazer de brincar com as palavras o aproximou do público infantil. Seus versos, marcados pela contenção, o ludismo, o trabalho escrupuloso com a linguagem, revelam influências de Oswald de Andrade e dos concretistas. Quem mais o influenciou, no entanto, foi Carlos Drummond de Andrade, que chegou a alertá-lo para o risco de imitação.  
       Nunca houve a rigor imitação, mas sim o propósito de absorver, e por vezes explicitar, as vozes que concorreram para que ele encontrasse a própria vez. Essa atitude, própria de quem se considerava aprendiz, transparece já no título do seu primeiro livro, “O aluno”, em cuja composição homônima se lê: “São meus todos os versos já cantados”. A disposição de dialogar com outros poetas reflete-se na sua extensa e variada atividade de tradutor. 
      Segundo David Arrigucci Jr, a poesia de José Paulo Paes é “breve e aguda a cada lance”; nela se percebe a tendência ao mordaz e ao sentencioso. Um dos bons exemplos disso é o conhecido jogo de palavras com o qual o poeta critica o gosto pela verbosidade e, ao mesmo tempo, faz uma profissão de fé literária: “conciso? com siso/ prolixo? pro lixo”. Essa tendência ao estrito, que põe o foco na linguagem, não reduz o olhar do poeta para as perplexidades e os dramas humanos. Entre eles, os que decorrem das crises e perdas associadas à passagem do tempo.

                         TEXTO

            Canção do adolescente

Se mais bem olhardes
notareis que as rugas
umas são postiças
outras literárias.
Notareis ainda
o que mais escondo:
a descontinuidade
do meu corpo híbrido.
Quando corto a rua
para me ocultar
as mulheres riem
(sempre tão agudas!)
do meu pobre corpo.
Que força macabra
misturou pedaços
de criança e homem
para me criar?
Se quereis salvar-me
desta anatomia,
batizai-me depressa
com as inefáveis
as assustadoras
águas do mundo.

(Em: Prosas seguidas de Odes Mínimas, p. 15)


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A “canção”, espécie do gênero lírico, caracteriza-se pela revelação de estados íntimos e pela musicalidade. Nela, o emissor refere suas tristezas, padecimentos (e também suas alegrias). O poeta se mantém fiel a essas características ao optar pelo verso de cinco sílabas (redondilha menor) em quase toda a composição e construí-la em tom de lamento, queixa.    
É comum ao adolescente se sentir incompreendido pelos outros. O uso da segunda pessoa do plural, que imprime certo formalismo ao discurso, concorre para acentuar a distância entre o jovem e o mundo. Sugere um respeito ressentido pelo universo dos adultos. 

      A modernidade dessa canção está em grande parte na autoironia. O eu poético critica a falsa compenetração, tão comum nos indivíduos dessa faixa de idade. Muito do que neles parece experiência, ou sofrimento, é na verdade pose. Às vezes não passa de uma imitação do que leem nos livros.  

     A transição de criança para adulto vem acompanhada de transformações físicas. É um momento de indefinição, de mistura de caracteres, que torna o adolescente alvo da curiosidade alheia e lhe agrava a timidez. Daí o propósito de se esconder dos outros.

     “Agudeza” no sentido de perspicácia e crítica ferina, considerando-se o valor metafórico do adjetivo “agudo” (cortante).  Para o adolescente, o juízo das garotas é doloroso e deixa marcas profundas. A intensidade emocional do julgamento feito por elas transparece no uso do ponto de exclamação, que ocorre apenas nesse verso.  

O hibridismo decorre de uma força mortal porque, levando a uma visão fragmentada de si mesmo, alimenta a crise de identidade. O sentimento de estar em pedaços compromete a harmonia do ser.

O uso metonímico de “anatomia” por “corpo” (ou seja, do abstrato pelo concreto) concorre para situar o desconforto do adolescente além do domínio físico. A desproporção física determina uma descontinuidade também psicológica, matriz da referida crise de identidade.  

O conjunto “salvar - batismo - águas” parafraseia o ritual cristão de entrada numa nova vida. Alude a um rito de passagem que, no contexto do poema, remete à travessia de criança a adulto. Trata-se de um percurso que assusta pelo que tem de enigmático e indizível. Um percurso que, ao contrário do sacramento cristão, permitiria ao jovem entrar não “no outro”, mas neste mundo; e em função do qual ele imagina se ver livre das incertezas e contradições.
       

José Lins do Rego, um retrato pungente do Nordeste

       José Lins do Rego Cavalcanti (1901-1957) é um dos maiores nomes da ficção brasileira. Seus romances, que compõem o ciclo da cana-de-açúcar, relatam as mudanças sociais e humanas ocorridas no Nordeste com a transformação do engenho em usina. Neto de senhor de engenho, ele vivenciou profundamente as mudanças trazidas pelo novo modelo econômico.      
        José Lins era leitor de Proust, entre outros autores clássicos, e fez da memória a força propulsora da sua ficção.  O memorialismo ganha destaque em sua obra desde o romance de estreia, “Menino de engenho”, que narra a infância de Carlinhos (alter ego do autor). Marcado pela morte da mãe, assassinada pelo marido ciumento, o garoto encontra na introversão uma forma de se refugiar dos conflitos na casa-grande. Seus tormentos se intensificam devido à precocidade das experiências sexuais, narradas com tintas naturalistas.   
       O autor pertence à segunda geração do Modernismo. Uma característica dos escritores desse período, além da preocupação social, é o uso de uma linguagem pautada na oralidade. Ao narrar os fatos como eles surgem na memória, “com os jeitos e as maneiras simples dos cegos poetas”, o autor o concorre para a expressão de uma língua brasileira (além de dar voz aos que a sociedade historicamente excluía).  
       No universo de José Lins convivem beatos, cangaceiros, mulheres da vida, trabalhadores das lavouras de cana, enfim, toda uma gama de personagens típicos de uma região marcada por fundos contrastes sociais. Num estilo isento de pregações doutrinárias, o autor enfatiza a investigação psicológica e, com isso, cria um painel rico de densidade humana.  
      “Usina”, com que se fecha o ciclo cana-de-açúcar, é uma das melhores demonstrações da interdependência, em sua obra, entre os fatores sociais e a dimensão humana. O personagem Juca ilustra bem isso; o malogro em preservar a usina, jogando por terra o capital que levantou ao hipotecar as terras da família, decorre basicamente de suas falhas morais.

                          TEXTO

                            Usina

            Os conhecidos vieram ver o negro de Avelina, que chegara de Recife. Correra a notícia de que ele viera rico, buscar a mãe e os irmãos. Na noite da chegada Ricardo ficou até tarde, contando as coisas. Os trens de cana passavam apitando. Da casa de d. Inês ouvia-se o barulho da usina. Só parava na festa de Natal.
         Generosa falou pelos deserdados da casa de d. Inês. Falou da vida que levavam:
         - Acabou-se o tempo bom, menino. Desde que o velho fechou os olhos que a gente pena. Mandaram até cozinheira da cidade. Eu até penso muita vez que o dr. Juca não é do sangue da família. Vi aquele menino nos cueiros, fiz muita papa para ele. Romana era quem dava de mamar. E botou a gente para fora. A gente entulhava na rua. Pergunte a Avelina o que sucedeu com Salomé? Tu pensas que pegaram o negro para casar? A gente ficou igual ao povo do Pinheiro. Nem parecia que Salomé era cria da casa. Podiam pegar o cabra e casar. A tua irmã está feito rapariga, como as outras. E a comida que a gente come? Os moleques de Joana e de Avelina tomando conta da casa. Trancaram a despensa. (...)
Mãe Avelina também tinha as suas queixas. No quarto, em que ela dormia, estava a rede de Rafael.
Ricardo dormiu na rede do irmão, que se acomodou na cama da mãe. E na rede escura de sujo foi ele pensando na vida que lhe chegava para viver. Apesar de tudo aquilo era melhor do que a casa de Jesuíno. A tia Generosa tinha suas mágoas da casa-grande, Avelina era a mesma paciência de sempre, não possuindo a coragem da tia Generosa para falar das coisas. Parecia que ela tinha medo de alguém. Ele puxara à mãe, era como ela, sempre com uma força maior do que ele manobrando o que desejava.
De madrugada ouviu o apito grosso da usina, os trens de cana passavam rangendo nos trilhos e o rumor da fábrica chegava aos seus ouvidos com nitidez. (...) A Várzea agora era só cana que nem chegava a se ver o fim. (...) No tempo do banguê, às seis horas tiravam a última têmpera, os carros de boi paravam às cinco, o motor se poupava para o outro dia. Usina tinha que ser de dia e de noite. (José Lins do Rego, Usina, p. 146-7)

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 “Contar as coisas” é também o que faz o romancista ao reproduzir a fala espontânea do povo. A narrativa de Ricardo enfoca a sua experiência na capital pernambucana, onde se envolveu em disputas políticas que o levaram à prisão de Fernando de Noronha. O relato do moleque frustra a ingênua expectativa dos conhecidos.
O velho a que Generosa se refere é o coronel José Paulino, cuja morte permitiu que seu filho Juca desse início às transformações no engenho. A negra é nostálgica de um tempo em que parecia menor a diferença entre senhores e escravos. A convivência entre uns e outros na casa-grande dava a esses últimos a ilusão de igualdade.
A escolha do verbo enfatiza o rebaixamento social e humano dos empregados. Excluídos da casa de d. Inês, que era um espaço contíguo à casa-grande, eles se veem reduzidos a entulho, lixo.
Uma das razões para o saudosismo de Generosa é que o coronel não era indiferente ao destino dos que lhe serviam. Ele fazia a defesa dos mais fracos e, de alguma forma, promovia a justiça. No seu tempo, o defloramento da irmã de Ricardo não a condenaria à prostituição. Esse interesse pelos outros se contrapõe à insensibilidade com que o filho trata os empregados.
José Lins do Rego é um autor trágico. Há em seus personagens (nuns mais do que noutros) o sentimento de uma “força maior”, que os ultrapassa e interfere em suas escolhas. Não se trata de um mero condicionamento socioeconômico, mas de um impulso fundado na culpa e orientado pela noção do Bem e do Mal. O Ricardo temeroso e inibido que puxou à mãe tem no desfecho do romance um gesto heroico, que lhe custa a vida: abre a porta do barracão para que os esfomeados entrem e o saqueiem.

A referência aos trens de cana destaca o novo ritmo de produção instaurado pela fábrica. Com as transformações na economia, intensifica-se a monocultura canavieira para saciar a fome das moendas. Ao contrário do que acontecia no tempo dos banguês, agora não há mais pausa no trabalho. A usina não opera apenas para a subsistência; visa sobretudo ao lucro, que deve ser  cada vez maior. 

Antônio Maria, um profissional da solidão

Antônio Maria de Araújo Morais nasceu a 17 de março de 1921, em Recife (PE). Na infância dividia o tempo entre as brincadeiras no engenho do avô e as aulas no Colégio Marista. Aprendeu piano e francês, como era moda entre as crianças bem-nascidas. Estudou agronomia e chegou a estagiar na usina da família como técnico de irrigação. Depois, com a crise econômica, viu os parentes vender os bens para saldar as dívidas.
Na adolescência, satisfazia seu lado boêmio frequentando o Cabaré Imperial e o bar Gambrínus. Por essa época atuou na Rádio Clube de Pernambuco como locutor e apresentador de programas musicais. Ansioso por deixar a província, viajou para o Rio de Janeiro em 1940, onde trabalhou como locutor esportivo na Rádio Ipanema. Depois de uma breve estada em Recife, passou um tempo em Fortaleza e voltou definitivamente para o Rio em 1944, onde começou a trabalhar em jornais e na televisão.   
Antônio Maria foi homem de muitas habilidades, mas se destacou mesmo como compositor e cronista. São dele algumas das mais belas composições do nosso cancioneiro popular, como Ninguém me ama, Manhã de carnaval e Valsa de uma cidade, as duas últimas em parceria com Ismael Neto.
Suas crônicas revelam um temperamento sensível à natureza e sobretudo à beleza das mulheres. São textos nos quais, associando o lúdico ao poético, o cronista aborda o ciúme, a traição conjugal, o malogro das relações amorosas. Ele se revela também um crítico mordaz dos hábitos pequeno-burgueses e do cotidiano de uma cidade que, em nome do desenvolvimento, impunha às pessoas uma rotina opressiva.  
O cronista tematiza sobretudo a solidão inerente ao ser humano. Os amores vêm e vão, mas o vazio permanece – um vazio que se reflete no olhar magoado e remete à nostalgia da pureza perdida. Para ele, “a grande felicidade seria (...) a de estar-se inteiramente só, em companhia de alguém”. Como é impossível viver esse paradoxo, parece não haver saída para a solidão. Resta à mulher o papel de amiga ou de parceira sexual, mas nenhum deles é suficiente para tornar o homem menos só.   

                                                            
                             TEXTO

                  Eram cinco e quinze

       Tudo entre nós havia que continuar sendo casual. Não tínhamos que marcar encontro das cinco e quinze, no tal bar, tido e havido como discreto. Resultado: aquele sem jeito, aquela falta de ar, aquela vontade de voltar para casa, que nós, apesar de lúcidos e afins, não conseguimos explicar. Mas que foi engraçado, foi.
      Primeiro, para termos direito a uma mesa, o garçom exigiu que fizéssemos uma despesa qualquer. Dinheiro havia. O que nos faltava era apetência. Deixamos a cargo do garçom o preço que haveríamos de pagar pelo local e pela discrição do nosso rendez-vous. Podia ter estourado um Moët & Chandon, mas, homem cauto, olhando-me nas alpargatas, trouxe-nos uma coca-cola tamanho família e um sanduíche de grande montagem (...).
         Andou o tempo e nós continuamos naquela conversinha de Alvarenga e Ranchinho, que não vende nem compra coisa alguma. Repare bem, o que dissemos não valia mais do que: “ehh, cumpade... pois é... tá sorto”. E por quê? Prometemos, no dia seguinte, uma explicação telefônica que nos reabilitasse, um para o outro e cada qual perante si mesmo. Infelizmente, prezada senhora, a explicação encontrada não é das mais honrosas.
         Primeiro, para esse negócio de namoro, é preciso ter peito. Nós não temos, hélas! Depois, é necessário, ao menos no começo, que um leve o outro no bico. E nós não podemos. Somos muito puros, um no outro. Muito iguais, muito devassados, um para o outro. Podemos falar, sim, já falamos. Mas, na realidade, não temos nada que contar um ao outro. Em nosso caso, desgraçadamente, seria chegar, abraçar e deixar sentir. Mas cadê peito? Continuemos, então, a viver dos acasos, até que um deles, um dia, seja o mais importante e cumpra, afinal, o nosso fado.


                                               COMENTÁRIOS

O emprego da gradação e a repetição do pronome demonstrativo visam demonstrar a intensidade do constrangimento do casal. Concorre para a representação desse mal-estar o uso dêitico do pronome, que deixa ao leitor a possibilidade de ampliar na imaginação o que fora vivido pelos dois.
  
O apelo ao registro oral é uma das características do gênero crônica, no qual se busca pela espontaneidade e o tom de conversa uma comunicação imediata com o leitor. São marcas de oralidade, nessa passagem, o uso do “que” como partícula de realce e a repetição do verbo.

 “Apetência” em duplo sentido, como se vê com o desenrolar da crônica. A falta de apetite para a comida antecipa (ou reflete) a inabilidade dos dois para dar consequências sexuais ao encontro.
   
O diálogo da dupla de cantores espelha o gauchismo do casal, que não encontra o que dizer um ao outro. Ambos, a seu modo, são também caipiras, no sentido de que preservam uma pureza que não condiz com a audácia requerida pela ocasião.

No emprego do vocativo, que se justifica por ser a crônica escrita em forma de carta, o pronome escolhido sugere respeito e distanciamento. É uma alternativa à intimidade que não pôde se estabelecer. Parece também camuflar o tom repreensivo com que o emissor reitera a inutilidade das palavras para explicar o que houve.

 “Ter peito” e “levar no bico” são expressões populares que designam, respectivamente, a ousadia e a lábia.  Fazem parte de uma estratégia de conquista que não se harmoniza com a sinceridade de intenções que há nos dois.

A referência ao acaso repete o início do texto, dando-lhe uma estrutura circular. É um meio de sugerir que nada está definido entre eles e deixar ao sabor das circunstâncias o futuro da relação.


Augusto dos Anjos, uma poética sombria

           Conta-se que, ao saber da morte de Augusto dos Anjos, Olavo Bilac pediu que lhe recitassem um poema do paraibano. Depois de ouvir “Versos a um coveiro”, teria comentado: “Fez bem em morrer. Não se perdeu grande coisa”. Descontado o tom anedótico desse episódio, não surpreende o pouco caso do parnasiano. Com sua poética áspera, marcada pelo vocabulário de mau gosto e por imagens de morte e deterioração, ninguém mais distante da “arte pela arte” do que o autor de “Eu e outras poesias”.
       Augusto dos Anjos começou simbolista, imitando Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. Ao publicar seu livro famoso, no entanto, preservou dessa escola apenas o soneto “Idealismo”. As outras composições nada tinham daquela busca pelo Inefável que marcava a estética simbolista; tampouco se inclinavam para a religião da forma.  Pelo contrário: na esteira de Charles Baudelaire, Cesário Verde, Guerra Junqueiro e outros, incorporavam às imagens o putrefato e o hediondo. Essas características viriam se articular ao prosaísmo e à tendência à paródia que marcaram a ruptura com a tradição. Ao expandir o território da poesia, confirmavam a verdade cara aos modernos segundo a qual não existem palavras poéticas, e sim uso poético das palavras.
        No entanto o poeta aliava o impulso para a modernidade a procedimentos formais que o ligavam ao passado -- como o uso de versos rimados e com métrica rigorosa. Esse contraste concorreu para que fosse praticamente ignorado pelos modernistas (Manuel Bandeira foi um dos poucos que escreveu sobre ele) e visto como um “caso” singular. Para muitos, ainda hoje, ele se distingue menos pelo artesanato dissonante do que por suas idiossincrasias. Nada mais falso do que esse tipo de simplificação.
         Uma forma de compreender a estética multifacetada de “Eu...” é atentar para o momento em que foi escrito. Na transição do século 19 para o 20 a ciência anunciava u                  m mundo novo, dominado pela razão e pela máquina, que apresentava o ser humano como efeito do determinismo biológico e ambiental.   
         Dessa visão do homem como produto de leis impessoais e mecânicas alimentou-se grande parte da melancolia do poeta. Há nele o impulso de auscultar e trazer à tona o que lateja na matéria como choro, lamento, tristeza -- fruto de uma culpa imemorial. Uma culpa que é de toda a humanidade e transforma a consciência num algoz impiedoso.
                                                                 
                          TEXTO  

                        O morcego

Meia noite. Ao meu quarto me recolho
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede...”
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Cicularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!


                        COMENTÁRIOS  

A sumária indicação do tempo, por meio de frase nominal, cria um clima de expectativa que se intensifica em razão da hora mencionada. “Meia noite”, tradicionalmente, associa-se a temor e mistério. É também um momento propício a que o indivíduo rumine as suas culpas.
A exclamação com que se inicia o segundo verso instaura um dramatismo que se mantém ao longo de toda a composição. A oração aditiva constitui uma aparente ruptura coesiva, pois não sequencia nenhuma outra. Mas a presença do conectivo “e” dá uma ideia de continuidade e aderência que se reforça por meio do dêitico “este”. A impressão é que o morcego, insaciável, sempre esteve ali.
 É frequente em Augusto dos Anjos a representação do sofrimento psíquico por meio de imagens ligadas ao corpo. Com isso ele concretiza a dor psicológica e foge à abstração. Ao designar metaforicamente o morcego como um “molho ígneo e escaldante” que lhe “morde” a garganta, busca apresentar um equivalente físico para a angústia mental.
Chama a atenção o alinhamento simétrico, no início e no fim do verso, entre o verbo (olho) e o substantivo (olho). Tal simetria remete à imagem especular de um olho que vê e ao mesmo tempo é visto. Se o morcego aparece “igual a um olho”, também observa quem o contempla e, sobretudo, com ele se confunde. A coerência dessa imagem está em que o bicho é, na verdade, uma projeção da mente do eu lírico.
O emprego de frases curtas concorre para sugerir o embate entre o indivíduo e sua consciência. Ao mesmo tempo, traduz a ansiedade ante a aproximação do molesto visitante. A impossibilidade de alcançá-lo é sugerida pelo cavalgamento entre o nono e o décimo verso, por meio do qual o verbo auxiliar (sugestivo da aproximação iminente) se separa do principal (indicativo de um contato superficial e efêmero).
A natureza horripilante do animal é indicada pela dupla metonímia -- “ventre” em lugar de “corpo”, e “parto” em vez de “feto”. A propósito, é comum em certas regiões do Nordeste chamar-se alguém muito feio de “um parto”.
Ao dizer que o morcego “é a consciência” o poeta explicitamente associa o plano metafórico ao plano real. Esse equacionamento faz com que o conceito pareça mais importante do que a imagem. É como se tudo evoluísse para o resumo feito no último terceto, em que se refere o inescapável poder do superego. Essa tendência à definição e à análise é um das marcas do poeta, que sobretudo nos poemas longos parece analisar e tentar compreender os seus delírios.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Aluísio de Azevedo, um anatomista social

          Aluísio (Tancredo Belo Gonçalves) de Azevedo é o mais importante representante do Naturalismo em nossa literatura. Seu romance “O mulato”, publicado em 1881, inaugurou entre nós esse estilo de época, marcado pela influência dos postulados científicos. A crença nas verdades da ciência levou a que modelos derivados da química e da biologia fossem transplantados para o estudo do comportamento humano.
       Pela ótica naturalista, a vida aparece como o produto de uma força cega, que “germina” da natureza e evolui segundo condicionamentos físicos e ambientais; o meio, a herança e o momento determinam as escolhas humanas. O determinismo apresenta o homem como privado de livre-arbítrio, ou seja, limitado em suas ações, percepções e sentimentos por estímulos alheios à sua vontade. Entre eles, o mais forte é sem dúvida o sexo.
         O romancista maranhense gosta de apresentar seus personagens em ambientes coletivos, nos quais a sexualidade se dissemina animalescamente. Por mais que o indivíduo resista (é o caso da mãe de Pombinha, que tenta em vão preservar a virgindade da filha para diferenciá-la das outras meninas do cortiço), a força do ambiente acaba reduzindo-o a mais um componente da massa. Limitados ao que há neles de instintivo, os personagens aparecem como componentes de uma engrenagem regida por leis mecânicas e impessoais. 
        Nos romances de Aluísio de Azevedo, o cientificismo se conjuga à preocupação social.  Inspirado pelos ideais republicanos, ele critica a Igreja e a monarquia, ao mesmo tempo que  protesta contra a escravidão (ilustrada pungentemente, em “O cortiço”, na figura de Bertoleza). Investe também contra o capitalismo, que estimula em indivíduos como João Romão a febre do lucro. Percebe-se ainda em sua obra o confronto entre os valores europeus e a mentalidade dos nativos, deformada pelos vícios da colonização. Contaminados por essa danosa influência, os portugueses acabavam “toldando-se nos vapores da cachaça e chafurdando-se na mulataria nacional”.

                                  TEXTO

                                 O cortiço 

 João Romão, em chinelas e camisola, passeava de um para outro lado no seu quarto novo. (...) Parecia muito preocupado; pensava em Bertoleza que, a essas horas, dormia lá embaixo num vão de escada, aos fundos do armazém, perto da comuna.
Mas que diabo havia ele de fazer afinal daquela peste?
E coçava a cabeça, impaciente por descobrir um meio de ver‑se livre dela.
É que nessa noite o Miranda lhe falara abertamente sobre o que ouvira de Botelho, e estava tudo decidido: Zulmira aceitava‑o para marido e Dona Estela ia marcar o dia do casamento.
O diabo era a Bertoleza!...  (...) Ora, que raio de dificuldade armara ele próprio para se coser!... Como poderia agora mandá‑la passear assim, de um momento para outro, se o demônio da crioula o acompanhava já havia tanto tempo e toda a gente na estalagem sabia disso?
Mas, só com lembrar‑se da sua união com aquela brasileirinha fina e aristocrática, um largo quadro de vitórias rasgava‑se defronte da desensofrida avidez da sua vaidade. Em primeiro lugar fazia‑se membro de uma família tradicionalmente orgulhosa, como era, dito por todos, a de Dona Estela; em segundo lugar aumentava consideravelmente os seus bens com o dote da noiva, que era rica e, em terceiro, afinal, caber‑lhe‑ia mais tarde tudo o que o Miranda possuía, realizando‑se deste modo um velho sonho que o vendeiro afagava desde o nascimento da sua rivalidade com o vizinho.
E via‑se já na brilhante posição que o esperava: uma vez de dentro, associava‑se logo com o sogro e iria pouco a pouco, como quem não quer a coisa, o empurrando para o lado, até empolgar‑lhe o lugar e fazer de si um verdadeiro chefe da colônia portuguesa no Brasil; depois, quando o barco estivesse navegando ao largo a todo o pano — tome lá alguns pares de contos de réis e passe‑me para cá o titulo de Visconde! (...)
Ah! ele, posto nunca o dissera a ninguém, sustentava de si para si nos últimos anos o firme propósito de fazer‑se um titular mais graduado que o Miranda. E, só depois de ter o titulo nas unhas, é que iria à Europa, de passeio, sustentando grandeza, metendo invejas, cercado de adulações, liberal, pródigo, brasileiro, atordoando o mundo velho com o seu ouro novo americano!
        E a Bertoleza? gritava‑lhe do interior uma voz impertinente.

                                COMENTÁRIOS 
Aluísio de Azevedo tende a construir personagens típicos, que representam uma classe, uma profissão, uma atividade artística. João Romão é o burguês obcecado pelo dinheiro e a ascensão social. Numa figura assim, não há brecha para dramas de consciência. O que o faz perder o sono não é nenhum escrúpulo de ordem moral, mas o julgamento de que seria alvo caso abandonasse a negra que outrora o ajudou a enriquecer e hoje constitui um obstáculo aos seus planos.

 O uso discurso indireto livre é um dos meios de expressar o monólogo interior indireto, em que a voz do personagem se alterna com o discurso do narrador. Em João Romão,  essa voz é marcada por uma oralidade recheada de clichês e expressões depreciativas, o que indica a estreiteza do seu universo mental.

 No estilo de Aluísio de Azevedo, o registro oral se alterna com marcas da língua culta.  O uso enclítico da forma oblíqua átona, por exemplo, é uma das formas de opor o discurso do narrador ao dos personagens.  
 A rivalidade entre Romão e Miranda é política, mas sobretudo econômica. A associação do casamento ao projeto de desbancar o futuro sogro reflete o pragmatismo do vendeiro, que age calculadamente em tudo que faz. Esse espírito de cálculo, que se sobrepõe aos vínculos emocionais e familiares, é uma das marcas do capitalismo que o personagem representa.
O casamento com a filha do comerciante Miranda e da aristocrática Estela era o primeiro passo para Romão adquirir nobreza. “Adquirir” é bem o termo, pois o que não lhe coube por herança viria pelo dinheiro. O autor critica nos brasileiros e nos imigrantes portugueses esse fascínio pela tradição. Vê isso com ironia, conforme se percebe na referência a Zulmira como uma “brasileirinha fina” -- expressão que destaca a doentia fragilidade da moça.
Na sequência ascendente dos adjetivos, “brasileiro” aparece como um resumo das qualidades do povo, cujo caráter é marcado pela liberalidade, o espírito de gastança, o desejo de ostentação. Uma das mais típicas manifestações dessa vaidade, índice de sucesso econômico e social, era o hábito de viajar à Europa.             
      

Paulo Mendes Campos, a erudição na crônica

                Paulo Mendes Campos é um dos maiores nomes da crônica brasileira. Pertenceu à chamada geração mineira de 45, em que também s...