sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Paulo Mendes Campos, a erudição na crônica


               Paulo Mendes Campos é um dos maiores nomes da crônica brasileira. Pertenceu à chamada geração mineira de 45, em que também se destacaram autores como Fernando Sabino, Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende. Eles misturavam boemia, jornalismo e crise existencial com a leitura dos grandes autores universais e o requinte verbal. Isso elevou o nível da nossa crônica, que passou a figurar nas antologias escolares como modelos de bem escrever.
            
            “Paulinho”, como era conhecido, tinha a fama de ser o mais erudito do grupo. Dominava os clássicos portugueses e estrangeiros, sobre os quais escreveu comentários agudos e esclarecedores. Muitos dos seus textos são excelentes instrumentos de iniciação na grande literatura -- de Homero a James Joyce, passando por Rimbaud e Lewis Carroll. Perfeccionista, chegou a estudar russo para ler Maiakovski no original.

            A versatilidade com que trabalhava a palavra escrita levou-o a exercitar gêneros tão diversos como a poesia e o humor (Luis Fernando Veríssimo confessa que o leu muito). Avesso ao retoricismo, explorou as possibilidades da palavra em versos, axiomas e jogos verbais. Nestes últimos, cultivou o nonsense como uma forma de refletir sobre a complexidade da natureza humana.

          O desejo de sentir “o peso e a nitidez das palavras” o levou a experimentar LSD. Num dos textos em que relata essa experiência, afirma ter tido acesso ao “milagre da voz”, que brotava do “jorro caótico do inconsciente”. Sua literatura foi sobretudo a tentativa de obter um acesso lúcido a tal  milagre. Ou seja: de entender e organizar esse caos, que é o mais fiel espelho da alma humana.


                                   TEXTO 

                         Para Maria da Graça

      Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.

         Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti. (...)

     Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida.

        (...) É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste (...).

       Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo”. Em algum lugarcogumelos que nos fazem crescer novamente.

         E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. (...) O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo.

         Toda pessoa deve ter três caixas para guardar o humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

         Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de . A dor tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.

         Conclusão: a própria dor deve ter sua medida. É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

 

                         COMENTÁRIOS     

          A crônica se estrutura como uma carta em que o autor interpreta alguns trechos de “Alice no país das maravilhas”. Acompanha um volume do livro de Lewis Carroll,  que é oferecido à garota como presente numa ocasião socialmente muito valorizada -- aquela em que a menina, passando a moça, debuta na sociedade. A natureza imaterial desse presente chama a atenção para um rito de passagem bem mais importante, que leva ao amadurecimento interior.  

         Ao contrário dos manuais de autoajuda, que procuram ensinar a verdade sonegando ou reduzindo a complexidade  do real, o autor propõe a Maria da Graça um enigma. A advertência para que ela procure o sentido da obra “em si mesma” é um estímulo a que desconfie das fórmulas enganosas que vão querer lhe passar. É também uma primeira e fundamental lição sobre a leitura; lemos para desvenvendar os mistérios que existem dentro de nós.

        O alerta agora é para que a menina resista aos apelos da competição, tão frequentes no mundo moderno. O gosto pela disputa, o desejo da vitória a qualquer preço, a obsessão de deixar para trás os concorrentes levam a que o indivíduo se alheie de si mesmo.

      Entre os perigos que rondam o adolescente, está a depressão. Como ela pode se estender além do esperado, deve-se prevenir contra um dos seus mais traiçoeiros efeitos, que é superdimensionar as dificuldades. A troca de camundongo por hipopótamo constitui uma representação alegórica desse engano, que tende a paralisar o deprimido e pôr em risco a sua vida.

        Conhecer a si mesmo, como lembra Sócrates, demanda uma operação dialética do pensamento. Após prevenir Maria das Graças sobre o perigo de superestimar os problemas, o autor alerta-a sobre o risco oposto: o de subestimá-los. Com isso, encoraja-a a desconfiar das aparências e avaliar com realismo as situações.

       As chamadas “grandes ocasiões”, conforme indicam as antíteses contidas neste parágrafo, são os momentos em que tendemos a sucumbir aos extremos. Elas são marcadas não apenas pelo que nos deprime, como também pelo que nos exalta (a exaltação, como se sabe, constitui o reverso maníaco, ou eufórico, do processo depressivo). Contra essas armadilhas deve incidir nosso humor mais precioso e recôndito.

        Segundo o ditado, o feitiço às vezes se volta contra o feiticeiro.  Na versão paródica apresentada no texto, enfatiza-se mais a punição da vítima do que a de seu possível algoz, e com isso alerta-se para o perigo de se deixar seduzir pelo sofrimento.


domingo, 27 de dezembro de 2020

Olavo Bilac, equilíbrio entre obsessão pela forma e expressão da subjetividade

Olavo (Braz Martins dos Guimarães) Bilac nasceu no Rio de Janeiro em 16 de dezembro de 1865; faleceu na mesma cidade, em 28 de dezembro de 1918. Cursou a Faculdade de Medicina até o 4º ano, quando desistiu para fazer Direito. Sem vocação também para a carreira jurídica, abandonou o curso alguns meses depois e passou a se dedicar ao jornalismo e à literatura. Participou da vida política do País, patrocinando campanhas cívicas como a do serviço militar obrigatório. Criou na Academia Brasileira de Letras a Cadeira nº 15, que tem como patrono Gonçalves Dias.

          Bilac é o mais popular representante da chamada tríade parnasiana, da qual fazem parte ainda Raimundo Correia e Alberto de Oliveira. Impregnado pelo humanismo clássico, foi adepto do “culto da forma”. Para ele a Beleza era um ideal supremo, uma Deusa cujo “templo augusto” não podia ser profanado.

Essa obsessão formal levou-o a especular sobre os limites da palavra para traduzir as angústias e perplexidades humanas. É famosa a passagem de “Inania verba” em que ele refere a inconciliável antítese entre ideia e expressão: “O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:/ A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...”. Por mais que o artista se esforce, torcendo e burilando os versos, o essencial sempre fica por dizer.

           Em sua lírica, o poeta exalta a dimensão física e imanente do objeto amoroso. Opondo-se aos românticos, que revestem a mulher de transcendência e impossibilidade,  opta por um sensualismo de fundo pagão. Nessa perspectiva humana e terrena desfaz-se a noção de pecado, pois “mais eleva o coração do homem/ Ser de homem sempre e, na maior pureza,/ Ficar na terra e humanamente amar”. A postura antirromântica não impede que vez por outra ele cultive as suas “cismas” impregnadas de nostalgia, das  quais não está ausente o sentimento de culpa.

   

                            TEXTO

                           Remorso

 


           Às vezes uma dor me desespera...
           Nestas ânsias e dúvidas em que ando,
           Cismo e padeço
, neste outono, quando
           Calculo o que perdi na primavera.

           Versos e amores sufoquei calando,
           Sem os gozar numa explosão sincera...
           Ah ! Mais cem vidas ! com que ardor quisera
           Mais viver, mais penar e amar cantando!

           Sinto o que desperdicei na juventude;
           Choro neste começo de velhice,
           Mártir da hipocrisia ou da virtude.

           Os beijos que não tive por tolice,
           Por timidez o que sofrer não pude,
           E por pudor os versos que não disse!

                (Os melhores poemas, p. 106)

 

                           COMENTÁRIOS

 

Chama a atenção o tom confessional no “impassível” Bilac. O autor deixa de lado a objetividade parnasiana para referir em tom sincero, pessoal, o arrependimento pelo que deixou de aproveitar na vida. O poema antecipa o que, algumas décadas depois, Manuel Bandeira expressaria nos versos “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.

 

Os dêiticos concorrem para enfatizar a experiência pessoal. Uma coisa é falar genericamente do outono da existência, confundido com o começo da velhice; outra é situar essa estação da vida no momento em que se fala e, com isso, dar uma ideia mais concreta dos seus efeitos.

 

Antítese entre duas metáforas (um tanto convencionais, por sinal) que indicam momentos distintos e opostos da vida. Há metáfora, e não metonímia, porque a analogia prevalece sobre a relação parte/todo, existente quando alguém diz de outrem, por exemplo, que completou “quatro primaveras” (por “quatro anos”).

 

O eu lírico lamenta não apenas os amores que não teve, como também os versos que não produziu. A oposição entre “calar” e “cantar”, presente no primeiro e no quarto versos, sugere a identificação entre vida e poesia. Demonstra que o arrependimento é tanto do homem, pelo que deixou de viver; quanto do artista, pelo que deixou de criar.

 

O teor declarativo desse verso mostra que o emissor não hesita entre duas possibilidades. Reconhece que se sacrificou, ora por conveniência social, ora por autêntica virtude. A eventualidade de ter sido pelo segundo motivo não torna menor o seu remorso, pois os dois tipos de renúncia conduziram a idêntica privação da arte e do amor.

 

A estruturação em frases nominais da última estrofe destaca os substantivos (beijos, versos) e termos equivalentes (os pronomes “o” e “que”, relacionados à ideia de sofrimento). Dispostos como núcleos dos versos, esses termos reiteram o que foi perdido mas perdura na lembrança do eu poético.

 

O reconhecimento dos motivos que levaram à perda constitui um exercício de análise típico de quem avalia a própria vida. Nem sempre esse reconhecimento abranda os efeitos do remorso.  Pelo contrário, até os agrava, conforme o poeta sugere ao equiparar a “tolice” o excesso de pudor e timidez.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Monteiro Lobato, a literatura como afirmação da brasilidade

 

          José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1848) é uma das figuras mais curiosas das nossas letras. Num país em que os escritores são na maioria burocratas e não sobrevivem da literatura, ele se destacou por ser o oposto. Participou ativamente de campanhas em prol da exploração do petróleo por companhias nacionais, chegando a criar empresas com esse objetivo; fundou editoras para que o nosso mercado editorial não dependesse do mercado estrangeiro; procurou modernizar a lavoura na fazenda que herdara do seu avô, o visconde de Tremembé.

        Estreou em livro com “Urupês”, coletênea de contos na qual enfoca tipos brasileiros -- sendo o mais famoso deles o caboclo Jeca Tatu. Jeca tornou-se uma espécie de símbolo do interiorano descrente e acomodado; sempre vota no governo e tem na pesca e na mandioca (de fácil plantio e colheita) o seu sustento. Um dos bordões preferidos dele é “Não paga a pena”, ou seja, não vale o esforço, com o que justifica a passividade.    

       Lobato escreveu vários livros infantis, gênero em que foi pioneiro entre nós. Achava que, para um país ter uma grande literatura, era preciso estimular as crianças a ler (considerava, por sinal, “a criatura humana muito mais interessante no período infantil do que depois de idiotamente tornar-se adulta"). Em grande parte graças a ele, muitos dos nossos leitores se formaram lendo as aventuras de Emília, Narizinho, dona Benta e outros cativantes personagens que habitam o Sitio do Pica-Pau Amarelo.

      Monteiro Lobato é um espírito polêmico. Seu nacionalismo o fez rejeitar o Modernismo de 1922; a manifestação mais famosa desse repúdio foi o artigo “Paranoia ou mistificação?”, em que faz uma critica contundente à pintora Anita Malfatti. Ainda hoje é objeto de controvérsias, conforme demonstram as tentativas de censurar dois de seus livros (“Negrinha” e “Caçadas de Pedrinho”) sob a acusação de racismo. Nada mais falso. Num conto como “Negrinha”, o tom irônico e a empatia com a personagem principal deixam patente o antirracismo do autor. 

 

                       TEXTO

                     Negrinha

                   (fragmento)

       Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.

       Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. (...) Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. (...)

      A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo (...). O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:

       — Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...

       Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. (...)

    Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.

      Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos.     Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.

     Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? (...)

        Chegaram as malas e logo:

       — Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.

      Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos. (...) Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia... (...)

      Negrinha olhou para os lados, ressabiada, com o coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. (...).

       Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!

        Assim foi — e essa consciência a matou.

               

                     COMENTÁRIOS

 A caracterização inicial da personagem destaca-lhe a discrição e a obscuridade. Nascida na senzala, Negrinha traz nos olhos apreensivos as marcas de uma escravidão que de certo modo persiste no ambiente onde vive, sob o jugo da patroa.

A menção à excelência de Dona Inácia antecipa a ironia presente no parágrafo. O autor pinta-a com uma postura senhorial que evoca o patriciado do antigo regime, insatisfeito com os privilégios perdidos. Expressões como “trono”, “dona do mundo” e “dando audiências” confirmam a nostalgia do antigo mando, que é alimentada pela adulação das autoridades religiosas.

A escravidão estimula o sadismo, transforma a agressão em prazer e mesmo em necessidade. Com a Abolição, tirou-se do senhor a chibata mas não o ímpeto cruel, que  agora se exerce de forma gratuita, automática. As miúdas maldades de Dona Inácia fazem lembrar os castigos de outros tempos, bem mais dolorosos; o efeito de ambos os tipos de suplício é o mesmo: coisificar suas vitimas, destruir-lhes a humanidade.    

O ninho de plumas contrasta com a esteira e os trapos imundos sobre os quais vivera Negrinha. A antítese ganha relevo porque se revela pela ótica da menina. Daí a comparação das sobrinhas com anjos e, sobretudo, com cachorrinhos novos -- imagem da irreverência infantil. Negrinha estranha a condescendência da patroa com tais manifestações de liberdade, que sempre lhe foram negadas.

O emprego do discurso indireto livre enfatiza a empatia do narrador com a personagem. Por meio dos sinais próprios desse tipo de discurso (reticências, pontos de exclamação e de interrogação), ele traduz a surpresa e o encantamento que a visão da boneca provoca na menina. 

A boneca desperta em Negrinha sentimentos que ela não conhecia. Repercute em camadas profundas do seu ser, tocando-lhe o instinto materno e revelando a sua humanidade. Essa consciência mostra-lhe, ao mesmo tempo, a condição de coisa a que fora relegada e contra a qual não pode lutar. O definhamento que se segue a essa descoberta culmina com a sua morte.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Moacyr Scliar, um alegorista do real

Moacyr Scliar (1937-2011) é um dos autores mais representativos da moderna literatura brasileira. Escreveu cerca de 80 livros, entre ficção, crônica, ensaio e literatura juvenil, nos quais se revela um arguto observador da condição humana.

Seus textos espelham as contradições de uma sociedade desigual e refletem sobre alguns dos principais desafios que se colocam ao homem como indivíduo: envelhecer, relacionar-se com o outro, afirmar a identidade num mundo marcado por diferenças raciais, culturais, religiosas. Esse último desafio o autor sentiu profundamente devido à sua condição de filho de imigrantes judeus. Tal experiência aparece em romances como “A guerra no Bom Fim”, que relata as dificuldades de adaptação de uma família judia ao bairro sul-rio-grandense; e “O centauro no jardim”, espécie de fábula em que a inadaptação do indivíduo à sociedade é simbolizada pelo personagem Guedali -- metade homem, metade cavalo.

Scliar formou-se em Medicina em 1962, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e se especializou em saúde pública. Trouxe para a literatura muito da experiência que adquiriu no contato com os doentes. A dor, o abandono e a desesperança, presentes nas casas humildes que visitou, dotaram-no de uma discreta propensão para o socialismo. Essa tendência, contudo, aparece em seus livros como um impulso humanista do qual estão ausentes as marcas sectárias.

O autor associa a leveza do estilo oral, próprio de quem quer contar uma história, à preferência pelo insólito. Segundo Regina Zilberman, “o insólito (...) instala-se como força real nos relatos, aproximando-os ao fantástico que, no início dos anos 1970, terá cadeira cativa na ficção brasileira.” É um fantástico, pois, que evidencia a crueldade do real. Um bom exemplo disso é o conto “Pequena história de um cadáver”, em que a personagem Maria se encanta com os acadêmicos que vêm dissecar seu corpo.  

                          

                         TEXTO

     Pequena história de um cadáver

                      (fragmento) 

Pela manhã, Quatro Cavaleiros entraram no necrotério. Não vinham em corcéis brancos, mas trajavam diversas padronagens de banlon. E estavam assustados demais para desafiar quem quer que fosse. Andaram por entre as mesas, tentando aparentar a indiferente experiência que não possuíam; e traíam-se a todo o instante na boca seca, na voz embargada, e numa certa palidez de olhos arregalados.

– É engraçado – disse o Primeiro (autor do discurso, era alto, loiro, rico e tinha veleidades literárias) – é engraçado a gente começar a Medicina pela Morte, que é justamente o fim, o indesejável, o inimigo vitorioso...

         – Vocês pensaram – disse o Segundo (baixo, moreno, de olhos fundos e tristesum revolucionário congênito) – que estes cadáveres foram gente como nós, gente que lutou, sofreu e acabou aqui? Se fossem ricos, teriam pelo menos o consolo de uma sepultura decente. Mas pobre não descansa nem depois de morto. Não deixa de ser uma lição...

         – Por que é que vocês não param de cagar pela boca? Não chega de discursos? – perguntou o Terceiro, irritado. Fora um dos últimos da turma, mas estava ligado aos outros por uma amizade nascida nos bancos do colégio. (Por isto, eles toleravam seu riso cínico, seu olhar oblíquo, seus ditos cortantes.)

        – O Quarto Cavaleiro nada disse. Avaliava os cadáveres, apenas. À luz de futuras dissecções. Mas, calado assim, descobriu Maria. Não Maria, gente; sim Maria, aparelho genital feminino. – A ginecologia é uma das especialidades de maior futuro, murmurou ele para os outros três, na sua voz grave e medida.

Sucedeu, portanto, que os Quatro Cavaleiros encontraram Maria.

Ela sentiu-se feliz em conhecê-los: jamais havia visto, juntos, quatro rapazes tão bonitos, inteligentes e delicados.

Pela primeira vez, nos últimos dois meses, lamentou profundamente ser cadáver.

         (Os melhores contos de Moacyr Scliar; fragmento de “Pequena história de um cadáver”, 44-45)

 

             COMENTÁRIOS

 O narrador compara os acadêmicos com os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, mas ironicamente opõe os corcéis em que estes vinham montados, segundo o relato bíblico, à prosaica indumentária dos jovens estudantes. A designação de “Cavaleiros” visa a apresentá-los mais como tipos do que como indivíduos.     

A imaturidade dos rapazes explica em parte o seu comportamento, que não se harmoniza com o que se espera de um primeiro contato com os cadáveres numa aula de anatomia. Esse é um momento que exige respeito e compenetração. O conto é uma critica à postura inadequada dos primeiros três, que demonstram não ter vocação para o curso que escolheram.    

Metonimicamente, os cadáveres remetem à Morte, que se contrapõe à vida – objetivo maior da atividade médica. A elaboração da antítese confirma as pretensões literárias do Primeiro Cavaleiro, que está mais interessado em “filosofar” do que em se aplicar ao estudo dos cadáveres.  

A referência ao lugar-comum destaca a dimensão social do conto. Assim como Maria, os cadáveres que chegam aos necrotérios são párias da sociedade que (para usar outro lugar-comum) não tinham onde cair mortos.

A linguagem chula é o sinal maior do desrespeito ao lugar onde os acadêmicos se encontram. Ela é própria do aluno que por amizade (e corporativismo) se faz tolerar pelos colegas. Tipos assim são comuns no ambiente das faculdades e não poderiam faltar no retrato corrosivo feito pelo autor.

Maria, que em vida foi “o último refúgio de soldados sem vintém”, não escapa ao seu destino nem depois de morrer. É também por seu aparelho genital que ganha a atenção do Quarto Cavaleiro. Mas esse pelo menos, conforme sugere o silêncio e a cogitação sobre as dissecções futuras, mostra alguma vocação para a Medicina.   

Graças à ironia, o encantamento da personagem com seus algozes deixa de soar como inconsciência ou alienação. É antes uma velada crítica à sociedade, que produz um grande número de marias e daqueles que delas se servem, dentro e fora dos necrotérios.



   

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Lygia Fagundes Telles, a vida é uma bolha ao vento

  

Lygia Fagundes Telles, nascida em São Paulo a 19 de abril de 1923, foi a quarta filha do casal Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário Silva Jardim de Moura. Seu gosto por contar histórias veio do tempo em que ouvia as narrativas contadas pelas empregadas e por outras crianças. Influenciada por esses relatos, que falavam de lobisomens e mulas sem cabeça, começou a criar seus próprios textos.  Muitos deles foram escritos nas últimas páginas dos cadernos escolares para serem contados depois na roda familiar.

         Em 1938, dois anos depois que seus pais se separaram, a escritora publicou o primeiro livro de contos, “Porão e Sobrado”. Trabalhou no Departamento Agrícola do estado de São Paulo a fim de custear os estudos e se formar em Educação Física, em 1941. Nesse ano iniciou o curso de Direito  e começou a participar de debates literários que a levaram a conhecer Mário e Oswald de Andrade. Seu primeiro romance, “Ciranda de Pedra”, foi escrito  na fazenda Santo Antônio, em Araras, onde se reuniramam alguns dos principais representantes do Modernismo.

Lygia tematiza a solidão familiar, as opões políticas, os desencontros da adolescência, a violência das relações sociais. Seus contos são recortes líricos ou pungentes em que a autora procura demonstrar a fragilidade das escolhas humanas – entre elas, a do amor. O amor é frágil (tem a estrutura de uma bolha de sabão); descobri-lo é se defrontar com o mais íntimo da natureza humana e se reconhecer dependente do outro.

         Para o poeta e crítico José Paulo Paes, um dos méritos da escritora foi “ter dado estofo convincentemente humano às suas personagens burguesas, salvando-as da estereotipia a que as costuma confinar a ficção ideologicamente engajada”. Ela conseguiu isso por se centrar nos dramas individuais, que se desenrolam para além dos condicionamentos de classe. Entre as fontes de tensão, está o exercício da liberdade. Ser livre é se comprometer radicalmente; o erro de determinados escolhas tem repercussões definitivas e, quando não é mais possível mudar o rumo das coisas, determina a diferença entre felicidade e infelicidade. É o que se vê, por exemplo, no doloroso apanhado que a protagonista do conto “Apenas um saxofone” faz da própria vida.

   

                          TEXTO      

              Apenas um saxofone

                     (fragmento)

 

           Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho também um diamante do tamanho de um ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de fivela, o iate – trocaria tudo, aneis e dedos, para poder ouvir um pouco que fosse a música do saxofone. Nem seria preciso vê-lo, juro que nem pediria tanto, eu me contentaria em saber que estava vivo, vivo em algum lugar, tocando seu saxofone.

Quero deixar bem claro que a única coisa que existe para mim é a juventude, tudo o mais é besteira, lantejoulas, vidrilho. Posso fazer mil plásticas e não resolve, no fundo é a mesma bosta, só existe a juventude. Ele era a minha juventude mas naquele tempo eu não sabia, na hora a gente nunca sabe nem pode mesmo saber, fica tudo natural como o dia que sucede à noite, como o sol, a lua, eu era jovem e não pensava nisso como não pensava em respirar. Alguém por acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa, eu respirava tão bem... (Apenas um saxofone, p. 65)

 

          COMENTÁRIOS

No conto, uma mulher rica e solitária faz uma espécie de acerto de contas com a vida. Ela se recrimina por ter abandonado um saxofonista, que foi seu grande amor, e se casado por interesse com outra pessoa. O desalento com que lembra essa perda é realçado pelo vocativo, pelas interrogações repetidas e pelas elipses do sujeito, que remetem à figura do músico.

 Nesse exemplo de intertextualidade, a fonte é a conhecida máxima “Vão-se os anéis e fiquem os dedos”. Ao alterar-lhe a forma, a narradora suprime o que a sentença comporta de resignação, ou seja, aceitação de um mal menor como alternativa a um mal maior. Para a solidão em que ela se encontra, parece não haver consolo. Vale ressaltar a ambiguidade semântica da palavra “anéis”, que se pode ler em sentido também literal.  

 O uso do monólogo interior direto concorre para revelar a agitação emocional da personagem. São marcas dessa estratégia discursiva o emprego da primeira pessoa e a pontuação em desacordo com a norma (quanto ao uso de vírgulas e pontos, por exemplo). A mulher fala a si própria mesmo quando se dirige a um suposto juiz a quem assevera a humildade das suas pretensões.

 O sentido de besteira (tolice) é amplificado metaforicamente em lantejoulas e vidrilho. Esse conjunto sugere uma vida insignificante e se opõe à ideia de juventude, que a personagem referiu um pouco antes e com a qual identificará o saxofonista.

 A plástica é um procedimento comum entre as pessoas a cuja classe a narradora pertence. A referência hiperbólica a esse tipo de intervenção cirúrgica não deixa de ser uma forma de ironia; a narradora critica os que a ele se submetem com o ingênuo propósito de resgatar a juventude perdida.

O uso de termos chulos e grosseiros (disfemismo) é uma marca de oralidade. Geralmente caracteriza as pessoas de pouca educação ou baixa classe social. Pode servir a diferentes propósitos estilísticos. Nessa passagem, rompe com o formalismo das aparências e realça a agressividade que a personagem dirige a si e à classe a que pertence.


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Lêdo Ivo, lirismo e engajamento social

 

          Lêdo Ivo nasceu a 18 de fevereiro de 1924, em Maceió (AL) e faleceu em 23 de dezembro de 2012 em Sevilha (Espanha). Estreou em 1944, com Imaginações; além de escrever poemas, crônicas, contos e romances, dedicou-se ao jornalismo e à tradução. Ocupou a Cadeira nº 10 da Academia Brasileira de Letras,      

         O poeta pertence à terceira geração do Modernismo. Sua obra mostra o equilíbrio entre as inovações formais da primeira geração e o engajamento da segunda.  Há nela, conforme assinala o crítico Tristão de Athayde, o propósito de revalorizar as palavras e criar novas imagens.  

       O alagoano associa o novo ao tradicional, o que justifica a sua preferência pelo soneto. Ele mescla esse tipo de composição a poemas longos, de metros variados, e à brevidade do haicai. São poemas que têm em comum o rigor da linguagem. A preocupação com a correção linguística levou-o certa vez a confessar que sentia “abalos sísmicos em suas florestas interiores ao ouvir confrades pronunciarem impropriedades como ‘de maneiras que’”. 

         A crítica costuma destacar em Ledo Ivo o compromisso com a subjetividade e a exploração do passado. O sentimento de ser único, só, e de se confrontar com o mundo, é uma característica da sua voz poética. Esse egocentrismo se alterna com o protesto contra as desigualdades sociais. Percebe-se em muitos dos seus versos o silencioso clamor dos excluídos, que perturba a consciência do autor tanto quanto as dúvidas sobre a existência de Deus.

          A desigualdade entre os homens, por sinal, concorre para que o poeta duvide de que haja um Ser superior. “Não somos dignos de piedade/ Melhor fora que Deus não existisse/ e vivêssemos todos fora de Seu olhar incômodo” – escreve ele num dos poemas de “A noite misteriosa”. A impotência em tornar melhor o homem não raro o faz optar pela ironia.

(Chico Viana, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, é professor de português e assina no site de “Língua” o blog “Na ponta do lápis” www.chicoviana.com)

                  TEXTO

              Os Morcegos

Os morcegos se escondem entre as cornijas
da alfândega. Mas onde se escondem os homens,
que contudo voam a vida inteira no escuro,

chocando-se contra as paredes brancas do amor?

A casa de nosso pai era cheia de morcegos
pendentes, como luminárias, dos velhos caibros
que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.
Estes filhos chupam o nosso sangue”, suspirava meu pai.

Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero
 que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos
 (meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige
 o suor do semelhante mesmo na escuridão?

No halo de um seio jovem como a noite
esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz
do farol
o homem guarda as moedas douradas de seu amor.

Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda

 o dia ofendido.

 

Ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito

 irmãos)
a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.

Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.

E entre as nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.

 

                      COMENTÁRIOS

 

A referência aos homens, como um todo, ilustra um traço comum no poeta: a interdependência entre o pessoal e o coletivo. Conforme se vê ao longo do texto, o que se aplica ao microcosmo da família cabe também no macrocosmo das relações sociais.  

A analogia entre homem e morcego se instaura mediante a indicação da escureza comum a ambos. Só que no homem o escuro é de natureza afetiva, espiritual; simboliza o egoísmo, a impossibilidade de amar. O branco anteparo do amor constitui uma antítese ao voo de quem é cego à consideração do outro.    

A descrição da casa, onde à noite chovia pelo telhado, realça a precariedade do espaço da família. O que o poeta rememora tem muito pouco de idealizado, e na cena familiar o que prevalece é o ressentimento paterno. A lembrança dos morcegos, com os quais os filhos se confundem, remete a uma visão desencantada da infância, do homem, do mundo.

A alusão bíblica antecipa o tom dessa estrofe; o homem não pode condenar um animal que faz o mesmo que ele. A solidariedade humana falha não apenas no âmbito da família; deixa de se cumprir também no domínio das relações sociais. Explorar o trabalho do semelhante é uma forma de “tirar-lhe o sangue”.

O autor ironiza os que no discurso se referem ao outro como irmão, porém na prática “se alimentam” dele.  A ironia se prolonga no uso do adjetivo “comunitário” (uma transposição de registro que lembra João Cabral de Melo Neto, companheiro de geração do poeta). Na ótica dos gananciosos, o que torna os homens semelhantes é a possibilidade de os explorar.   

A quarta estrofe responde à indagação feita no segundo verso do poema (sobre onde os homens se escondem). Esconder-se é guardar, guardar-se, usurariamente reter sob o travesseiro (imagem de indiferença e posse) a moeda de um amor que não se distribui aos outros. A ideia reitera o motivo da escureza, que como vimos aproxima o homem do morcego.

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