segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Monteiro Lobato, a literatura como afirmação da brasilidade

 

          José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1848) é uma das figuras mais curiosas das nossas letras. Num país em que os escritores são na maioria burocratas e não sobrevivem da literatura, ele se destacou por ser o oposto. Participou ativamente de campanhas em prol da exploração do petróleo por companhias nacionais, chegando a criar empresas com esse objetivo; fundou editoras para que o nosso mercado editorial não dependesse do mercado estrangeiro; procurou modernizar a lavoura na fazenda que herdara do seu avô, o visconde de Tremembé.

        Estreou em livro com “Urupês”, coletênea de contos na qual enfoca tipos brasileiros -- sendo o mais famoso deles o caboclo Jeca Tatu. Jeca tornou-se uma espécie de símbolo do interiorano descrente e acomodado; sempre vota no governo e tem na pesca e na mandioca (de fácil plantio e colheita) o seu sustento. Um dos bordões preferidos dele é “Não paga a pena”, ou seja, não vale o esforço, com o que justifica a passividade.    

       Lobato escreveu vários livros infantis, gênero em que foi pioneiro entre nós. Achava que, para um país ter uma grande literatura, era preciso estimular as crianças a ler (considerava, por sinal, “a criatura humana muito mais interessante no período infantil do que depois de idiotamente tornar-se adulta"). Em grande parte graças a ele, muitos dos nossos leitores se formaram lendo as aventuras de Emília, Narizinho, dona Benta e outros cativantes personagens que habitam o Sitio do Pica-Pau Amarelo.

      Monteiro Lobato é um espírito polêmico. Seu nacionalismo o fez rejeitar o Modernismo de 1922; a manifestação mais famosa desse repúdio foi o artigo “Paranoia ou mistificação?”, em que faz uma critica contundente à pintora Anita Malfatti. Ainda hoje é objeto de controvérsias, conforme demonstram as tentativas de censurar dois de seus livros (“Negrinha” e “Caçadas de Pedrinho”) sob a acusação de racismo. Nada mais falso. Num conto como “Negrinha”, o tom irônico e a empatia com a personagem principal deixam patente o antirracismo do autor. 

 

                       TEXTO

                     Negrinha

                   (fragmento)

       Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.

       Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. (...) Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. (...)

      A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo (...). O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:

       — Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...

       Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. (...)

    Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.

      Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos.     Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.

     Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? (...)

        Chegaram as malas e logo:

       — Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.

      Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos. (...) Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia... (...)

      Negrinha olhou para os lados, ressabiada, com o coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. (...).

       Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!

        Assim foi — e essa consciência a matou.

               

                     COMENTÁRIOS

 A caracterização inicial da personagem destaca-lhe a discrição e a obscuridade. Nascida na senzala, Negrinha traz nos olhos apreensivos as marcas de uma escravidão que de certo modo persiste no ambiente onde vive, sob o jugo da patroa.

A menção à excelência de Dona Inácia antecipa a ironia presente no parágrafo. O autor pinta-a com uma postura senhorial que evoca o patriciado do antigo regime, insatisfeito com os privilégios perdidos. Expressões como “trono”, “dona do mundo” e “dando audiências” confirmam a nostalgia do antigo mando, que é alimentada pela adulação das autoridades religiosas.

A escravidão estimula o sadismo, transforma a agressão em prazer e mesmo em necessidade. Com a Abolição, tirou-se do senhor a chibata mas não o ímpeto cruel, que  agora se exerce de forma gratuita, automática. As miúdas maldades de Dona Inácia fazem lembrar os castigos de outros tempos, bem mais dolorosos; o efeito de ambos os tipos de suplício é o mesmo: coisificar suas vitimas, destruir-lhes a humanidade.    

O ninho de plumas contrasta com a esteira e os trapos imundos sobre os quais vivera Negrinha. A antítese ganha relevo porque se revela pela ótica da menina. Daí a comparação das sobrinhas com anjos e, sobretudo, com cachorrinhos novos -- imagem da irreverência infantil. Negrinha estranha a condescendência da patroa com tais manifestações de liberdade, que sempre lhe foram negadas.

O emprego do discurso indireto livre enfatiza a empatia do narrador com a personagem. Por meio dos sinais próprios desse tipo de discurso (reticências, pontos de exclamação e de interrogação), ele traduz a surpresa e o encantamento que a visão da boneca provoca na menina. 

A boneca desperta em Negrinha sentimentos que ela não conhecia. Repercute em camadas profundas do seu ser, tocando-lhe o instinto materno e revelando a sua humanidade. Essa consciência mostra-lhe, ao mesmo tempo, a condição de coisa a que fora relegada e contra a qual não pode lutar. O definhamento que se segue a essa descoberta culmina com a sua morte.

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