sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Moacyr Scliar, um alegorista do real

Moacyr Scliar (1937-2011) é um dos autores mais representativos da moderna literatura brasileira. Escreveu cerca de 80 livros, entre ficção, crônica, ensaio e literatura juvenil, nos quais se revela um arguto observador da condição humana.

Seus textos espelham as contradições de uma sociedade desigual e refletem sobre alguns dos principais desafios que se colocam ao homem como indivíduo: envelhecer, relacionar-se com o outro, afirmar a identidade num mundo marcado por diferenças raciais, culturais, religiosas. Esse último desafio o autor sentiu profundamente devido à sua condição de filho de imigrantes judeus. Tal experiência aparece em romances como “A guerra no Bom Fim”, que relata as dificuldades de adaptação de uma família judia ao bairro sul-rio-grandense; e “O centauro no jardim”, espécie de fábula em que a inadaptação do indivíduo à sociedade é simbolizada pelo personagem Guedali -- metade homem, metade cavalo.

Scliar formou-se em Medicina em 1962, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e se especializou em saúde pública. Trouxe para a literatura muito da experiência que adquiriu no contato com os doentes. A dor, o abandono e a desesperança, presentes nas casas humildes que visitou, dotaram-no de uma discreta propensão para o socialismo. Essa tendência, contudo, aparece em seus livros como um impulso humanista do qual estão ausentes as marcas sectárias.

O autor associa a leveza do estilo oral, próprio de quem quer contar uma história, à preferência pelo insólito. Segundo Regina Zilberman, “o insólito (...) instala-se como força real nos relatos, aproximando-os ao fantástico que, no início dos anos 1970, terá cadeira cativa na ficção brasileira.” É um fantástico, pois, que evidencia a crueldade do real. Um bom exemplo disso é o conto “Pequena história de um cadáver”, em que a personagem Maria se encanta com os acadêmicos que vêm dissecar seu corpo.  

                          

                         TEXTO

     Pequena história de um cadáver

                      (fragmento) 

Pela manhã, Quatro Cavaleiros entraram no necrotério. Não vinham em corcéis brancos, mas trajavam diversas padronagens de banlon. E estavam assustados demais para desafiar quem quer que fosse. Andaram por entre as mesas, tentando aparentar a indiferente experiência que não possuíam; e traíam-se a todo o instante na boca seca, na voz embargada, e numa certa palidez de olhos arregalados.

– É engraçado – disse o Primeiro (autor do discurso, era alto, loiro, rico e tinha veleidades literárias) – é engraçado a gente começar a Medicina pela Morte, que é justamente o fim, o indesejável, o inimigo vitorioso...

         – Vocês pensaram – disse o Segundo (baixo, moreno, de olhos fundos e tristesum revolucionário congênito) – que estes cadáveres foram gente como nós, gente que lutou, sofreu e acabou aqui? Se fossem ricos, teriam pelo menos o consolo de uma sepultura decente. Mas pobre não descansa nem depois de morto. Não deixa de ser uma lição...

         – Por que é que vocês não param de cagar pela boca? Não chega de discursos? – perguntou o Terceiro, irritado. Fora um dos últimos da turma, mas estava ligado aos outros por uma amizade nascida nos bancos do colégio. (Por isto, eles toleravam seu riso cínico, seu olhar oblíquo, seus ditos cortantes.)

        – O Quarto Cavaleiro nada disse. Avaliava os cadáveres, apenas. À luz de futuras dissecções. Mas, calado assim, descobriu Maria. Não Maria, gente; sim Maria, aparelho genital feminino. – A ginecologia é uma das especialidades de maior futuro, murmurou ele para os outros três, na sua voz grave e medida.

Sucedeu, portanto, que os Quatro Cavaleiros encontraram Maria.

Ela sentiu-se feliz em conhecê-los: jamais havia visto, juntos, quatro rapazes tão bonitos, inteligentes e delicados.

Pela primeira vez, nos últimos dois meses, lamentou profundamente ser cadáver.

         (Os melhores contos de Moacyr Scliar; fragmento de “Pequena história de um cadáver”, 44-45)

 

             COMENTÁRIOS

 O narrador compara os acadêmicos com os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, mas ironicamente opõe os corcéis em que estes vinham montados, segundo o relato bíblico, à prosaica indumentária dos jovens estudantes. A designação de “Cavaleiros” visa a apresentá-los mais como tipos do que como indivíduos.     

A imaturidade dos rapazes explica em parte o seu comportamento, que não se harmoniza com o que se espera de um primeiro contato com os cadáveres numa aula de anatomia. Esse é um momento que exige respeito e compenetração. O conto é uma critica à postura inadequada dos primeiros três, que demonstram não ter vocação para o curso que escolheram.    

Metonimicamente, os cadáveres remetem à Morte, que se contrapõe à vida – objetivo maior da atividade médica. A elaboração da antítese confirma as pretensões literárias do Primeiro Cavaleiro, que está mais interessado em “filosofar” do que em se aplicar ao estudo dos cadáveres.  

A referência ao lugar-comum destaca a dimensão social do conto. Assim como Maria, os cadáveres que chegam aos necrotérios são párias da sociedade que (para usar outro lugar-comum) não tinham onde cair mortos.

A linguagem chula é o sinal maior do desrespeito ao lugar onde os acadêmicos se encontram. Ela é própria do aluno que por amizade (e corporativismo) se faz tolerar pelos colegas. Tipos assim são comuns no ambiente das faculdades e não poderiam faltar no retrato corrosivo feito pelo autor.

Maria, que em vida foi “o último refúgio de soldados sem vintém”, não escapa ao seu destino nem depois de morrer. É também por seu aparelho genital que ganha a atenção do Quarto Cavaleiro. Mas esse pelo menos, conforme sugere o silêncio e a cogitação sobre as dissecções futuras, mostra alguma vocação para a Medicina.   

Graças à ironia, o encantamento da personagem com seus algozes deixa de soar como inconsciência ou alienação. É antes uma velada crítica à sociedade, que produz um grande número de marias e daqueles que delas se servem, dentro e fora dos necrotérios.



   

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