Moacyr Scliar (1937-2011) é um dos autores mais representativos
da moderna literatura brasileira. Escreveu cerca de 80 livros, entre ficção,
crônica, ensaio e literatura juvenil, nos quais se revela um arguto observador
da condição humana.
Seus textos espelham as contradições de uma sociedade
desigual e refletem sobre alguns dos principais desafios que se colocam ao
homem como indivíduo: envelhecer, relacionar-se com o outro, afirmar a identidade
num mundo marcado por diferenças raciais, culturais, religiosas. Esse último
desafio o autor sentiu profundamente devido à sua condição de filho de imigrantes
judeus. Tal experiência aparece em romances como “A guerra no Bom Fim”, que
relata as dificuldades de adaptação de uma família judia ao bairro
sul-rio-grandense; e “O centauro no jardim”, espécie de fábula em que a
inadaptação do indivíduo à sociedade é simbolizada pelo personagem Guedali -- metade
homem, metade cavalo.
Scliar formou-se em Medicina em 1962, pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e se especializou em saúde pública.
Trouxe para a literatura muito da experiência que adquiriu no contato com os
doentes. A dor, o abandono e a desesperança, presentes nas casas humildes que visitou,
dotaram-no de uma discreta propensão para o socialismo. Essa tendência, contudo,
aparece em seus livros como um impulso humanista do qual estão ausentes as
marcas sectárias.
O autor associa a leveza do estilo oral, próprio de
quem quer contar uma história, à preferência pelo insólito. Segundo Regina Zilberman,
“o insólito (...) instala-se como força real nos relatos, aproximando-os ao
fantástico que, no início dos anos 1970, terá cadeira cativa na ficção
brasileira.” É um fantástico, pois, que evidencia a crueldade do real. Um bom
exemplo disso é o conto “Pequena história de um cadáver”, em que a personagem Maria
se encanta com os acadêmicos que vêm dissecar seu corpo.
TEXTO
Pequena história de um cadáver
(fragmento)
Pela
–
É
–
–
– O
Sucedeu,
(Os
COMENTÁRIOS
O narrador compara os acadêmicos com os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, mas ironicamente opõe os corcéis em que estes vinham montados, segundo o relato bíblico, à prosaica indumentária dos jovens estudantes. A designação de “Cavaleiros” visa a apresentá-los mais como tipos do que como indivíduos.
A imaturidade dos rapazes explica em parte o seu comportamento,
que não se harmoniza com o que se espera de um primeiro contato com os
cadáveres numa aula de anatomia. Esse é um momento que exige respeito e
compenetração. O conto é uma critica à postura inadequada dos primeiros três, que
demonstram não ter vocação para o curso que escolheram.
Metonimicamente,
os cadáveres remetem à Morte, que se contrapõe à vida – objetivo maior da
atividade médica. A elaboração da antítese confirma as pretensões literárias do
Primeiro Cavaleiro, que está mais interessado em “filosofar” do que em se aplicar
ao estudo dos cadáveres.
A referência ao lugar-comum destaca a dimensão social
do conto. Assim como Maria, os cadáveres que chegam aos necrotérios são párias
da sociedade que (para usar outro lugar-comum) não tinham onde cair mortos.
A
linguagem chula é o sinal maior do desrespeito ao lugar onde os acadêmicos se
encontram. Ela é própria do aluno que por amizade (e corporativismo) se faz
tolerar pelos colegas. Tipos assim são comuns no ambiente das faculdades e não
poderiam faltar no retrato corrosivo feito pelo autor.
Maria, que em vida foi “o último refúgio de soldados
sem vintém”, não escapa ao seu destino nem depois de morrer. É também por seu
aparelho genital que ganha a atenção do Quarto Cavaleiro. Mas esse pelo menos,
conforme sugere o silêncio e a cogitação sobre as dissecções futuras, mostra alguma
vocação para a Medicina.
Graças à ironia, o encantamento da personagem com seus algozes deixa de soar como inconsciência ou alienação. É antes uma velada crítica à sociedade, que produz um grande número de marias e daqueles que delas se servem, dentro e fora dos necrotérios.
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